terça-feira, 18 de maio de 2010

O MUNDO MARAVILHOSO DA MÚSICA


O MUNDO MARAVILHOSO DA MÚSICA

Henry Thomas


A história de Orfeu, pai do canto

POVOS de todas as regiões e de todos os tempos têm reconhecido o efeito da música sobre as emoções humanas. Entre os antigos gregos essa crença era até mesmo dignificada, ao ponto de se tornar uma teoria filosófica. Os gregos julgavam que o ethos, o valor moral da música, era seu elemento mais importante. Poetas, músicos e público aceitavam esse valor como um postmado.

A noção grega do poder da música está cristalizada na bela história de Orfeu. "Pai do canto", foi o título dado a Orfeu, poeta e músico lendário. De acordo com a lenda, Orfeu recebeu como presente de Apolo uma lira e teve como mestras as Musas, deusas das artes. Como resultado, se tornou êle capaz, com sua música, não só de encantar homens e animais, mas também de mover árvores e rochedos. Nas suas viagens com os Argonautas, adormentou monstros e deteve penhascos cadentes.

A tragédia, que engolfou Orfeu, também ilustra de modo completamente patético os efeitos de sua arte encantadora. Quando sua mulher, Eurídice, morreu, suplicou a seu deus padroeiro que o capacitasse a libertá-la do reino de Plutão. Sua súplica foi atendida, sob condição de que, no seu regresso, não deveria olhar para Eurídice, enquanto não se achasse fora do mundo subterrâneo.

Com o encanto de sua música, Orfeu conseguiu inutilizar a resistência de Plutão, bem como a das Fúrias, aquelas selvagens criaturas, que guardam os portões do mundo subterrâneo. Mas Eurídice, arrebatada de amor à vista de seu marido, não podia compreender porque não olhava êle para ela. Pediu-lhe que lhe lançasse um simples e rápido olhar. Justamente antes que alcançasse êle a entrada do mundo superior, sucumbiu a seus rogos. Olhou para trás. Mas o resultado foi funesto. Eurídice foi arrebatada para sempre de sua vista.

A própria história é quase ideal para uma montagem musical e muitas óperas têm sido ‘escritas sobre esse tema, sendo as mais famosas as de Monteverde e de Gluck.
O jazz na selva africana

A MÚSICA baseia-se em três elementos: melodia, ritmo e harmonia. O último destes, a harmonia, é uma fase bastante adiantada e só tomou posse da música durante os últimos mil anos. Mas a melodia e o ritmo apareceram muito cedo no desenvolvimento humano; datam de muito antes, efetivamente, que o começo de nossa história registada (cerca de 5.000 anos).

Se desejarmos conhecer alguma coisa a respeito da história de nossa própria cultura, ou, pelo menos, a respeito de seus primeiros passos, podemos encontrá-la na civilização dos selvagens de nossos dias. A descoberta da tenebrosa África Central durante o século passado, possibilitam aos cientistas o conhecimento de muita coisa a respeito de culturas primitivas. No campo da música, descobriu-se que a linha melódica (os altos e baixos de uma canção e sua variedade de expressão) era monotonamente simples. A toada consiste, com mais frequência, em poucos tons infindavelmente repetidos.

Mas o ritmo já alcançou um desenvolvimento avançado, mais avançado, de fato, que o de nossa própria música. Esses selvagens e seus filhos são capazes, por exemplo, de tocar muito naturalmente simultâneos tipos rítmicos de dois e três compassos, e mesmo de três e quatro (este último é mais difícil). A variedade e subtileza de seus tipos rítmicos e de sua acentuação sugerem, efetivamente, o jazz contemporâneo.

De modo que não foi por simples coincidência que o negro americano se tornou responsável pela criação do jazz. Herdara as tendências para a proficiência rítmica e o engenho de seus antepassados; e depois de um longo repouso essas tendências tornaram a despertar, para florir na profusa expressão rítmica do jazz. Bastante significativo no jazz, da mesma forma que na "música" dos selvagens africanos, é que os instrumentos de percussão (tambores e outros) sejam dominantes.

A "Opera" entre os antigos gregos

O QUE chamamos ópera é o resultado dum progres-so que se realizou num nobre grupo de Florença, aí pelo ano de 1600. A renascença italiana, que resultara numa revivescência do saber antigo, havia estimulado aquela gente a imitar o drama antigo, no qual sempre se empregara música. Criando o gênero ópera, pensavam que estavam também revivendo o método clássico de apresentação do drama grego. Descobrimos depois que eles estavam enganados.

Os gregos não faziam ópera, no sentido que lhe damos, que implica ênfase da música a expensas do drama. Para eles, a peça era o essencial, a primeira coisa. Mas

justamente porque não podiam eles conceber uma peça a não ser em termos de poesia, nem podiam conceber a poesia sem música. Toda a sua poesia, seja lírica, épica ou dramática, implica recitação musical. O próprio poeta devia ter algo de músico e tinha de conhecer os numerosos princípios e regras que governam a arte do tom, tão bem como conhecia as regras e princípios que governam a escolha de palavras, silabação c acento métrico.

A música grega não era completamente igual à nossa e soaria de modo bastante estranho para a maior parte do povo de hoje. A despeito disso, a música grega é a base de muito de nossa própria música e muitas das regras transmitidas pelos músicos, matemáticos e filósofos gregos valem em música até hoje. Não somente os principais cantores, nos seus dramas, entoavam a poesia, mas assim também fazia o coro, aquela curiosa instituição, que sobrevive na nossa ópera e peças musicais de hoje, mas que desapareceu do drama sem música.

O drama grego era, pois, baseado em três fatores, mais ou menos equivalentes aos que governam a construção da grande ópera de hoje: 1) ação dramática; 2) linguagem poética; 3) música com a qual a poesia era cantada, usualmente com acompanhamento instrumental.
 música dos salmos

POR proibir a lei mosaica aos hebreus a fabricação de imagens, davam eles mais atenção, como uma espécie de compensação, às artes gêmeas da poesia e da música. Como com os gregos e outros povos antigos, a poesia e a música entre os hebreus não tinham vida independente, mas uma era concebida em dependência da outra. Temos mais indicações sobre o modo como soava a música grega do que na verdade no caso da dos hebreus. Mas numerosas referências nas Escrituras não nos deixam dúvida de que os hebreus não somente cantavam, mas também tocavam vários instrumentos, como a harpa, a gaita de foles e o órgão. Não conhecemos, porém, a exata descrição desses instrumentos nem como soavam eles.

É evidente, porém, que os Salmos eram verdadeiros hinos e destinam-se a ser cantados. Às vezes encontramos instruções a respeito da espécie de instrumento que deve acompanhar o salmo. Por exemplo, o quarto salmo deve ser cantado com acompanhamento de instrumentos de corda.

De modo geral, podemos estar certos de que a música dos hebreus, como a de outros povos orientais, diferia da grega, na sua ênfase sobre os intervalos cromáticos *— as mudanças que resultam da elevação ou do abaixamento dos tons da escala natural. Mas isso é tudo quanto sabemos da música hebraica. E’ certo que os Salmos são cantados até hoje por judeus piedosos e ortodoxos. Mas o moderno método de cantá-los teve provavelmente começo muitos séculos depois da dispersão dos judeus da Palestina (79 D.C.). Como resultado dessa dispersão, a antiga música dos Salmos se perdeu para o mundo.
Quando os grandes compositores eram criados

DURANTE o século XVIII, centenas de cortes da Europa Central acolhiam um dignitário chamado Kapellmeister (mestre de capela). Diretor da orquestra da corte poderíamos chamá-lo, mas isso só conta parte da história. Literalmente, a palavra significa mestre de capela. As funções do Kapellmeister começavam por ser religiosas — dirigir o coro na igreja, tocar órgão, prepa-

rar e mesmo compor música para as cerimônias religiosas A esses deveres acrescentava-se um programa secular — música para concertos, festividades e assim por diante, quer a corte fosse a de um príncipe, quer pertencessem eles ao estado ou à igreja. Haydn, por exemplo, foi Kapellmeister, na corte húngara do príncipe Esterhazy. O jovem Mozart e seu pai foram empregados por Colloredo, príncipe-bispo de Salzburgo. João Sebastião Bach prestou serviços em muitas de lais cortes.

Naqueles tempos, cada principezinho tinha sua comitiva própria de músicos, variando o número de acordo com sua influência e seu entusiasmo musical. À testa da comitiva musical estava o Kapellmeister. Seu encargo era fornecer música apropriada todas as vezes que se achasse necessário. De um bom Kapellmeister exigia-se não só que fosse capaz de executar e de reger, mas também de compor música de variada espécie em curto prazo. Não eram tempos aqueles em que um compositor, divorciado da vida, pudesse descansadamente levar um ano para produzir uma obra-prima.

"Esses mestres de capela", como pitorescamente observou um escritor, "levantavam-se de madrugada para escrever novas composições, que ensaiavam durante o dia e regiam à noite. Não é muito possível que eles se afligissem com o derradeiro destino das obras que acumulavam nos armários, ditadas como elas eram usualmente, ou pelas circunstâncias, ou pelo capricho da pessoa a quem serviam".

A condição desses músicos, inclusive a do mestre de capela, era literalmente a de criados. Tinham de usar libré, dormir nos aposentos para criados e comer na mesa dos criados. Suas horas eram severamente dirigidas. No contrato escrito entre Haydn e seu príncipe, notamos que o príncipe parece pôr mais ênfase no cerimonial e nas minúcias desciplinares do serviço do músico do que mesmo em seus deveres musicais. E que um gênio, em tal posição, pudesse sujeitar-se à humilhação dum mero criado é evidente com o caso de Mozart, que, tendo ofendido ao príncipe-bispo, foi fisicamente lançado escada abaixo, com a proibição de tornar a voltar.

Mas se esses músicos estavam, sob certo aspecto, como prisioneiros engaiolados, a maior parte deles, incluindo um gênio como Haydn, mal pensava na possibilidade de romper as grades da prisão. Até o tempo de Beethoven que, nas palavras de Michel Brenet, "recusou suportar a canga", a grande maioria dos músicos germânicos tinham como honra invejável pertencer a um senhor e ficavam satisfeitos com uma escravidão, que os libertava dos cuidados materiais da vida.
Curiosos fatos a respeito das primitivas orquestras

A PALAVRA "orquestra" foi livremente usada no passado e tem vários significados até mesmo em nossos dias. De acordo com a ocasião e a pessoa que empregue o termo, pode ainda significar um grupo de três ou quatro instrumentos acompanhando uma cerimônia nupcial; um jazz-band; de três a cincoenta ou mais músicos, acompanhando uma representação teatral; ou um exerci tado grupo de exímios executantes, dirigidos por experimentado maestro numa composição sinfônica.

Quer aplicada ao teatro, quer ao concerto de salão, a orquestra tem uma história de pouco mais de trezentos anos. E’ assim, comparada com outras antigas formas de música, quase um bebê. Entre as mais antigas tentativas para escrever para um grupo de instrumentos, independentemente da voz humana, contam-se as dos compositores venezianos da última metade do século XVI. Uma "orquestra" típica constitue-se de dois violinos, dois pistões e dois trombones.

Dessa forma era organizada a parte essencial das orquestras, que em breve seriam empregadas nas representações das primeiras óperas, em começos do século XVII. Aqui, como em outros aspectos, o inovador musical foi Cláudio Monteverde que utilizou, na representação de Orfeu, dois cravos, dez violas, dois contrabaixos, uma harpa, dois violinos, dois alaúdes, três pequenos órgãos, três violas-de-gamba, quatro trombones, dois pistões, unia flauta, uma trompa alta e três trompas surdinadas, formidável coleção, incluindo já se vê, instrumentos agora fora de moda.

As violas foram os antepassados da família do violino, cujo desenvolvimento pelos grandes fabricantes italianos afetou a história da orquestra, dando-lhe novo brilhe e virtuosidade.

O desenvolvimento da orquestra, porém, processou-se lenta e pesadamente. Algumas das primeiras orquestras continham um número quase incrível de instrumentos. Em certa comemoração, uma orquestra de Handel era constituída dc 48 primeiros e 47 segundos violinos, 26 violas, 21 violoncelos, 15 duplos bassos, 6 flautas, 26 oboés, 26 fagotes, 1 duplo fagote, 12 trompas, 12 cornetins, 6 trombones, 4 tambores e 2 órgãos — 252 peças ao todo. conjunto que faria vergonha até mesmo à mais numerosa orquestra sinfônica moderna.

Consideravelmente diminuída em tamanho, porém, foi a instrumentação, isto é, os diferentes instrumentos da orquestra, para a qual escreveram Mozart, Haydn e o próprio Beethoven, com a simples adição de um par de clarinetas (que Haydn só muito mais tarde empregou). Mas a orquestra típica, até o tempo de Beethoven (fim do século XVIII), quasv invariavelmente incluiu, em acréscimo, um cravo. A esse instrumento de teclado, mais velho que o piano mais brilhante, sentava-se um executante, quando na o o compositor, que tocava o que se chamava "baixo inteiro" dando mais "fundo" à harmonia, e preenchendo quaisquer partes que pudessem faltar numa orquestra improvisada. Também servia êle, até certo ponto, como regente. Pelo menos, marcava o compasso e cuidava de ver se os músicos tocavam ao mesmo tempo. Porque o glorioso ídolo do século XX, o regente de ópera ou de sinfonias, não havia ainda aparecido e só iria nascer, por assim dizer, no século XIX.
Os três BB

A HANS VON BULOW, tão grande regente quanto homem de espírito, atribue-se a invenção da expressão: "Os três BB". Era o maior louvor que se podia conceder a João Brahms, amigo de Bülow, assim incluído em termos de igualdade com os dois indisputáveis gigantes da arte do som: João Sebastião Bach e Luiz von Beethoven.

Bach, que nasceu em 1685 e morreu em 1750, viveu uma vida quase claustral, de sossego e simplicidade. Descendente duma longa linhagem de piedosos músicos luteranos, excedeu a todos seus antepassados no gênio musical e talvez também na piedade. Escreveu obras estupendas como a Missa em Si menor, para maior glória de seu Deus e de sua igreja. No Cravo bem temperado, série de quarenta e oito Prelúdios e Fugas, não somente empregou uma forma supostamente fora da moda para a criação de obras-primas que são a Bíblia cotidiana dos pianistas, mas também efetivamente estabeleceu para os tempos vindouros o sistema de tonalidades maiores e menores, que está na base de nossa música moderna. Que êle também pudesse ser um musicista mundano sem sacrifício de sua conciência artística, provam-no incontáveis composições, das quais a maior é a série de seis Concertos orquestrais, escrita para um patrão em perspectiva, o Eleitor de Bran-denburgo. Durante sua vida, pouco conhecido era fora de sua nativa Saxônia. E grande parte de sua música, jazia esquecida até que foi redescoberta por Mendelssohn, Desde então tem crescido rapidamente a popularidade desse grande compositor, a quem a música deve quase "tanto quanto a religião ao seu Fundador".

Mesmo antes que Bach houvesse atingido a maioridade, a música já havia começado a sofrer uma mudança fundamental. As velhas formas, derivadas da música do igreja, estavam sendo abandonadas em favor de formas mais simples, como as sonatas e sinfonias. O chamado estilo clássico desenvolvido por Haydn e Mozart atingiu as maiores alturas, nas soberbas séries de nove sinfonias, sonatas para piano e nos maravilhosos quartetos de corda de Beethoven (1770-1827). Beethoven escreveu muitas outras obras, obras-primas em suas respectivas formas. Instilou no estilo clássico nova humanidade e aplainou o caminho para o movimento romântico na música. Era um poderoso intelecto, reforçado por uma personalidade dinâmica. Como Bach, na cegueira de sua velhice, havia ditado suas competições a seus filhos, também Beethoven compôs muitas de suas grandes obras, quando já estava parcial ou totalmente surdo.

João Brahms (1833-1897) não sofreu tais deficiências físicas. Sua vida se passou, em sua maior parte, tão saudável e vigorosamente que o mundo mal pôde acreditar em sua morte. Porque, ao passo que Bach era uma figura obscura ao morrer, e Beethoven um gênio essencialmente incompreendido, Brahms foi reconhecido, quase em toda a sua vida, como um compositor de primeira plana. Quando ainda rapazola, foi ousadamente aclamado por Schumann, como o músico do futuro. Embora sua fama houvesse transposto o mundo inteiro, trabalhava lenta c cautelosamente na sua Primeira Sinfonia, que só apareceu quando êle se aproximava dos quarenta anos. Foi prontamente saudada por Bulow como a Décima Sinfonia, alusão às nove imortais de Beethoven. Brahms escreveu somente quatro sinfonias, mas cada uma delas é uma obra-prima. Compôs muita música de câmara e se exercitou em quase todos os gêneros musicais, exceto a ópera. Com êle culmina o movimento romântico alemão na música.
Trovadores, Minnesingers e Mestres Cantores

COMO resultado das Cruzadas, floriu a cavalaria.

Criou sua própria cultura e sua arte: entre outras coisas, a canção do trovador e o canto de amor (Minne-sang). O trovador exerceu sua arte no sul da França. Diz-se que o primeiro trovador foi o conde Guilherme IX, de Poitiers (1087-1127). O mais conhecido talvez tenha sido Bertran de Born, que apareceu cem anos depois. Na França do Norte, onde os trovadores se chamavam trouvères, conta-se entre eles Ricardo Coração de Leão, que morreu em 1199.

As canções dos trovadores, evocando um mundo de romance e sentimento, tratavam comumente da fiel — ou infiel — bem-amada, da saudade do ausente, ou do tema familiar do menestrel errante, à procura de seu senhor. Usualmente não cantavam os próprios trovadores suas canções, mas encarregavam dessa tarefa ao plebeu jong-leur, ou menestrel, dos quais o mais famoso foi Blondel de Nesle, ligado ao rei Ricardo.

Na Alemanha, similar desenvolvimento começou cerca de um século mais tarde, estreitamente relacionado com a arte francesa. Ali os compositores-poetas eram conhecidos pelo nome de Minnesingers, porque o assunto principal de suas canções era frequentemente o amor (Minne, em alemão). Essas canções alemãs, que pareciam talvez mesmo mais artísticas que as francesas, eram quase que invariavelmente cantadas pelos próprios compositores, pertencentes também usualmente à ordem da cavalaria.

À arte do Minnesinger atingiu o seu apogeu no século XIII e começou a declinar em meados do século XIV. Naquela época os cidadãos estavam começando a suplantar em importância os cavalheiros. De modo que a sua criação, conhecida pelo nome de Canção do Mestre, substituiu Minnesing. Os Meistersingers (mestres cantores) eram habitantes das cidades, coesamente organizados em guildas, com estritas regras de arte de processo. Suas regras, que regiam o aprendizado e o adiantamento, eram tão rigorosas como as que prevaleciam numa associação profissional de homens altamente adiantados. O que não podia ler música era chamado de discípulo. Quando aprendia notação, tornava-se companheiro de escola. Depois de executar com mestria cinco ou seis melodias, tornava-se cantor. Tendo composto versos para uma canção, conferiam-lhe as honras de poeta. E finalmente, depois de ter criado uma melodia original, tornava-se mestre. Foi a beleza e a poesia desses guildes musicais que serviu a Ricardo Wagner tão bem, na sua famosa ópera Os mestres cantores de Nurembcrg.
As glórias da música sacra

HÁ uma atraente e ainda não contada história da música nos primórdios da Igreja Cristã. Foi apenas durante os últimos cincoenta anos, mais ou menos, que os estudiosos começaram a descobrir não somente a enorme dívida que toda a música ocidental tinha para com a Igreja, mas também a maravilhosa herança de canto que jazia esquecida durante séculos. Parte dessa herança é agora utilizada nas cerimônias da Igreja Católica, e boa quantidade dela enveredou, duma forma ou doutra, para a linguagem geral da música.

Durante o quarto e em princípios do século quinto, de acordo com fidedignos estudiosos, essas melodias começaram a surgir. Eram uma espécie de canto sem ritmo, ou melhor, seu ritmo dependia das palavras. A fonte desses tons foi parcialmente grega, até certo ponto hebraica e em maior parte, do Próximo Oriente. Da Síria, supõe-se tenha vindo a prática de pôr música em textos, de modo semelhante à forma que hoje chamamos hinal. Imensa quantidade de tais melodias apareceu no correr dos séculos. Essas melodias são denominadas de gregorianas, porque se relacionam com o papa Gregório, que as organizou em primitiva coleção, com regras para seu emprego.

Passaram-se outros cinco séculos e notável desenvolvimento começou a efetuar-se, algo de essencialmente novo em toda a história da música. À toada original acrescentava-se outra, para ser cantada (por outra voz, está claro) simultaneamente com aquele. A princípio, a inovação não era mais complicada do que cantar com intervalo duma oitava. A outra inovação foi haver uma segunda voz (ou terceira), cantando com um intervalo de um quinto ou de um quarto da voz principal. Isso, também, soa um tanto cru aos nossos ouvidos, algo, na verdade como uma espécie rudimentar do que se chama hoje politonalidade (música em diferentes claves duma vez).

Mas esse processo era, em embrião, todo o sistema de polifonia que iria alcançar sua maior glória nos séculos XV e XVI, e a harmonia coral que veio depois disso. Polifonia significa uma espécie de música, em que muitas vozes cantam ou tocam simultaneamente, cada uma sustentando um tom identificável, mas todos os tons relacionados uns com os outros, de acordo com certas regras. Essas regras tornaram-se, no curso dos séculos, múltiplas e complexas. Mas resultaram, no melhor dos casos, em prolongadas séries de obras-primas produzidas pela chamada Escola Neerlandesa (muitos de cujos membros, bastante curiosamente, não tinham vindo da Holanda nem ali vivido). Atribue-se geralmente a direção suprema desse desenvolvimento a Palestrina (1525-1594), italiano que se havia assenhoreado da arte dos neerlandeses. A maior parte de sua música, como a de seus mestres, era para a igreja.

As maravilhas dessa música começaram justamente igora a ter a merecida consagração. Os compositores modernos reconhecem sua dívida para com os neerlandeses, tanto quanto para com Bach, e estão fazendo o que podem para que o mundo compreenda que nossa música não começou no século XVIII.

Gíria na música americana

COSTUMAVAMOS ficar um tanto envergonhados de nossa gíria até que escritores, como H. L. Mencken, começaram a mostrar que era uma criação nossa de que nos podíamos orgulhar. Era igualmente natural para os americanos, com nova e vital cultura, mudarem a língua inglesa para adaptá-la às suas necessidades, assim como as antigas tribus gaulesas mudaram a língua latina no francês e as tribus castelhanas no espanhol.

A música é, a muitos respeitos, semelhante à linguagem de palavras. Veja-se, por exemplo, a adaptabilidade da música às várias épocas, lugares, povos, onde ela surge. Ou, em outros termos, o tempo, o lugar e o povo moldanj a expressão musical. íi por isso que a música criada na América há de ser naturalmente diferente da que é composta na Inglaterra, no Continente ou na China.

O jazz é a nossa característica contribuição à linguagem musical, do mesmo modo que a gíria é a nossa mais característica contribuição à linguagem de palavras. Se o jazz é produto afro-americano, importado pelos negros do sul, se é a expressão musical do suspiro dos ventos das planícies ou dos arquejos das locomotivas, ou se é a criação dos nervosos e febris russos judeus do Quarteirão Leste de Nova York, tem sido tema de discussão e discordância, entre músicos, escritores e estudiosos do folclore americano, desde que o jazz fez sua primeira aparição, há cerca de vinte e cinco anos. Mas essas discussões não têm importância. A verdade parece ser que o jazz brota de todas essas fontes e de muitas outras. Não podemos dizer que a gíria foi simplesmente criada em Hollywood, em Omaha, em Nova York ou em Peoria. Tem-se criado por todos os cantos destes Estados Unidos. Do mesmo modo, o jazz é a solução musical de muitos elementos, que se têm misturado no nosso cadinho de fundição.

O jazz é, pois, para a música, o que nossa gíria é para a língua: expressão típica de nosso gênio nacional. Jorge Gershwin e Jerônimo Kern, Cole Porter e Irving Berlin são tão inconfundivelmente americanos, como os barulhentos, porém simpáticos turistas, que podeis encontrar em Florença ou em Viena. Igualmente característicos são os jazz-banâs e seus dirigentes, Duke Ellington, Benny Goodman, Paul Whiteman e Fred Waring, alguns dos quais são também compositores.

Não somente no salão de dansa e no clube noturno, no teatro e no cinema, se familiarizaram os povos europeus com o jazz americano. Ouviram-na em refinadas versões, em suas salas de concerto e em seus teatros de óperas. Stravinsky, por -exemplo, começou a render seu tributo à música americana antes do fim da Grande Guerra. Ravel, o principal compositor francês, usou o jazz em seu Concerto de Piano, dez anos depois. E neste intermédio, um compositor tcheco, Ernst Krenek, esereveu uma ópera fantástica: Jonny Spielt Auf (Joãozinho faz algazarra), que tem um negro artista de jazz como figura principal e na qual o compositor nos regala com um jazz, de primeira qualidade, de sua própria criação.
Alguns grandes compositores modernos

I . IMITEMO-NOS a alguns dos mais significativos no-mes do presente século, compositores que provavelmente serão consagrados pelas futuras gerações, ou por causa da intrínseca qualidade de suas composições, ou por causa da importancia e influência de suas arrojadas experiências.

Original criador musical foi Cláudio Aquiles Debussy, compositor francês, que morreu em 1918, e foi o mais destacado expoente do impressionismo na música, principio aproveitado das outras artes. Entre os artificios por êle empregados nesse propósito conta-se a escala de pleno-tom, escala em que a oitava está dividida em seis intervalos iguais, em vez de sete desiguais, como na maior parte de nossa música. Êle é mais estimado por algumas de suas obras orquestrais, lindamente coloridas como urna paisagem de Monet, suas peças para piano, suas canções, e especialmente sua ópera, Peliéas et Mélisande, que tem sua crônica musical. Mais ou menos semelhante a De-bussy é Maurício Ravel, porque demonstra tendências similares em sua música. É mais conhecido, para a maior parte do povo, pelo seu Bolero.

Igor Stravinsky, compositor que, a seu modo, deu à música impulso muito mais enérgico, arrancando-a de sua auto-complaeêneia, do que Debussy, nasceu na Rússia, passou a mocidade ali e estudou composição com Rimsky-Korsakov. De 1909 até começos da Grande Guerra, escreveu uma série de notáveis bailados, de sempre crescente harmonia e de audácia rítmica e instrumental: Pássaro de Fogo, Petrouchka e Sacre du Printemps (Rito da Primavera). Depois escreveu uma espécie de ópera-bailado.

Les Noces (As Núpcias), que levou ao apogeu suas arrojadas inovações. Consequentemente, em parte devido s circunstâncias externas, e em parte devido a uma mudança de espírito, começou uma série de extraordinárias experiências em estilo, muitas das quais de volta à simplicidade. Nos últimos anos, porém, sua música tem sido menos russa de caráter e mais francesa, pelo menos superficialmente. Deve-se isto, sem dúvida, ao fato de ter morado a maior parte do tempo na França, durante quase trinta anos.

A música de Arnoldo Schoenberg, compositor austríaco, vivendo atualmente à sombra da colônia cinematográfica de Hollywood, é um enigma que nossa geração parece incapaz de resolver. Foi compositor na tradição de Wagner, quando chegou â conclusão de que a espécie de música que estava escrevendo "tornara-se sediça", pelo menos para êle. Depois de alguns anos, formulou a fantástica teoria da música de doze tons, que dividiu a oitava em doze intervalos iguais (empregando as teclas pretas e brancas do piano) com cada tom tão importante quanto seus companheiros e com absoluta recusa da centenária preeminência da tonalidade. É um sistema complicado, que não pode ser aqui explicado, mas de que resulta uma espécie de música quase totalmente diversa de qualquer outra jamais ouvida anteriormente, música especialmente rica em dissonâncias, horrorosas para a maior parte dos ouvidos. Raramente, porém, se toca essa música, porque os executantes têm medo de ofender seus auditórios e porque é excessivamente difícil de aprender.

A menção de Schoenberg não é completa sem referência ao pequeno grupo de compositores que seguiram sua direção, incluindo Antônio Webern, Ernest Krenek e Albano Berg. Este último é olhado por alguns como a mais bem dotado compositor de nossa geração. Entre suas obras conta-se a notável ópera Wozzeck, sua segunda ópera, Lulu, representada em Zurich, com grande êxito, em maio de 1937, e o sensacional Concerto de Violino, último trabalho de Berg, que foi aclamado, em alguns países, como a mais significativa composição desde a Grande Guerra.

Música e instrumentos estranhos

OS modernos estudos, que têm dissipado o nevoeiro que encobria o passado e as modernas explorações, que têm penetrado em terras bárbaras até então inacessíveis, combinaram-se para mostrar-nos que na música, como nas outras coisas, não existe só o nosso sistema. Se aceitamos a noção conveniente de que a música é uma linguagem tanto quanto uma arte, esperamos verificar que a linguagem musical de outros tempos e de outros povos não necessitava ter sen lido para nós, afim de ser inteligíveis para eles.

A música chinesa soa estranha aos nossos ouvidos, com sua "curiosa" escala, com a proeminência dos instrumentos de percussão (batidos ou picados, mais do que soprados ou atritados por um arco), e sua falta do que chamamos harmonia. Na África, a "música" tem sido feita, durante séculos, por meio de artifícios, como bater com baquetas contra um cavalo de pau, ou sobre pedaços de pau seco esticados através de duas árvores paralelas (algo parecido com o nosso moderno xilofone). Na África, também, foi descoberto um monocórdio (produzindo um único som) consistindo em um arco de bambu, atravessado por uma corda lesamente esticada. Essa corda é tangida por um leve pedaço de bambu, para produzir um som insólito.

Um estudo da música indú oferece convincentes provas de que ela chegou a um estado de perfeição que se compara bem favoravelmente com a nossa, embora seja de diferente espécie. Os indús possuem regular orquestra sinfônica de instrumentos de percussão, bem mais variados em timbre e, para muitos ouvidos, mais belos que os nossos. Têm uma guitarra chamada Magoudi, um violino de três cordas, e um notável instrumento conhecido pelo nome de Vina. É uma espécie de cruzamento entre a guitarra e a lira da civilização ocidental. Tem quatro cordas e é feita de um grande tubo oco de bambu, em cuja extremidade há duas cabaças, para aumentar a ressonância. Tem um braço como uma guitarra, com saliências marcando os desejados graus da escala. Produz uma músics sonambúlica, sobrenatural, assombrante.

Tanto a China como a índia, para não mencionar outros países, têm desenvolvido escalas lindas e atraentes que o cultivado ouvido de um ocidental, uma vez domina da a estranheza, acha muitas vezes mesmo mais belas do que as nossas escalas um tanto rígidas. Efetivamente, um pequeno contacto com a música de um povo, como com a sua linguagem, é suficiente para despí-la de sua curiosidade. E uma pequena reflexão é bastante para mostrar-nos que nossa música a princípio soa de modo tão curioso para outros povos como as deles para nós. De fato, diz-se que os orientais preferem a afinação de nossas orquestras às composições que elas tocam, depois de estarem afinadas.

Fonte: Globo Ed 1949. Trad e Adap. Oscar Mendes. Maravilhas do conhecimento humano.
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Mozart's Great Mass - Alice Millar Chapel Choir and NUSO

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