quarta-feira, 13 de abril de 2011

HOLOPOESIA



Holopoesia

O holopoema é o poema concebido, 
realizado e apresentado 
holograficamente
 
Isto implica dizer, a princípio, que ele se organiza no espaço tridimensional e, à medida que o leitor o observa, transforma-se e dá origem a novos significados. Assim, ao ler o poema no espaço, ou seja, ao caminhar ao redor do holograma, o observador modifica constantemente a estrutura do texto.
O holopoema não é um poema em versos transformado em holograma nem um poema concreto ou visual adaptado para holografia. 
 
A estrutura sequencial do verso corresponde ao discurso linear, enquanto a estrutura simultânea do poema concreto ou visual corresponde ao raciocínio ideográfico. O poema em versos, impresso no papel, estabeleceu a linearidade do discurso poético enquanto o poema visual inventou a liberdade das palavras na página.

A "nova" poesia holográfica começa nos anos 80 por libertar a palavra da página — através de um sistema passível de reprodução em série. Diferente do poema visual, ela pretende corresponder à descontinuidade do pensamento, ou seja, a percepção do holopoema não vai se dar linear nem simultaneamente e sim através dos fragmentos vistos aleatoriamente pelo observador conforme seu posicionamento em relação ao poema. 
 
A percepção no espaço de cores, volumes, transparências, mudanças de forma, posições relativas entre objetos, surgimento e desaparecimento de formas é indissociável da percepção sintática e semantica do texto. 
 
A cor não é só cor, ela também tem função poética: a letra não é só letra, é também forma pictórica. Se compararmos os elementos da linguagem com as noções da geometria euclideana, poderíamos pensar as letras como pontos, as palavras e as frases como retas e os textos visuais como planos. 
 
Assim, as letras teriam dimensão igual a zero, as frases teriam dimensão igual a um e os textos visuais teriam dimensão igual a dois. Por extensão, o holopoema, ao retirar o texto da página e ao lançá-lo no espaço, teria dimensão igual a três.
Mas o holograma não precisa ser necessariamente tridimensional, pois a geometria fractal revela-nos a existência de dimensões entre as de número 1, 2, 3 e 4 — e oferece-nos os instrumentos (softwares) para a criação de imagens com dimensões fracionárias: os fractais ensina-nos a aceitar a fração, a passagem entre duas dimensões como um novo valor em si. Trabalhar com fractais holográficos é gerar imagens holográficas de dimensão diferente de 3 ou, em outras palavras, fazer hologramas que não sejam tridimensionais.

Em matemática, ser um fractal significa, a princípio, estar entre uma determinada dimensão e outra (de número maior ou menor). Em arte, ser um fractal pode significar, por analogia, estar entre a dimensão verbal e a dimensão visual do signo. Levando adiante uma comparação, poderíamos tentar pensar uma linguagem — em movimento, em transformacão no espaço-tempo — que seja esta passagem entre o código verbal (a palavra) e o código visual (a imagem). 
 
Talvez a experiência estética, em sentido genérico, ou a experiência poética, em sentido estrito, possam ser enriquecidas se o observador-leitor estiver diante de um texto que se potencialize em imagem e diante de uma imagem que se potencialize em texto em um processo reversível.

 Fonte:
 A LINGUAGEM DO CAOS
 
http://alinguagemdocaos.cygnusnet.org/2008/03/holopoesia.html

DORA FERREIRA DA SILVA - POESIAS


 
DORA FERREIRA DA SILVA
(1918-2006)

Autora de livros como Andanças, Talhamar, Retratos de Origem, Poemas da Estrangeira e Hídrias. Foi três vezes ganhadora do Prêmio Jabuti. Recebeu também o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2000, por sua obra Poesia Reunida, editado pela Topbooks.

Como tradutora, destacam-se seus trabalhos com autores como Rilke, Saint-John Perse, San Juan de la Cruz, Hörderlin e Jung. Também atuou como editora, fundando a revista Diálogos, juntamente com seu marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva. Depois, criou a revista Cavalo Azul, para difusão da poesia. Atualmente, funcionava em sua casa, um Centro de Estudos de Poesia com o mesmo nome.
 

TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTO EN ESPAÑOL
                 


CÂNTICOS

I

Tenho-te um amor de mansidões
rebanho lento e branco passeando na alvorada
tenho-te um amor tranqüilo e trêmulo
não se música ou se constelações

tenho-te um amor de eternidades
em vagas renascentes — brando som de flauta
chamando as superfícies distraídas
para a reconcentração definitiva

II

Como um ramo de úmidas rosas
quisera estar na sala em que respiras
o aroma de tuas primaveras
Como um cesto de frutos derramados
quisera ser a oferta abandonada
na mesa simples da tua eternidade

 

AO SOL

Naufragas na noite
em pompas de luz e imensidade
todo germe palpita na semente
e da nova manhã ressurges
clara divindade
nua a carnação sob o manto escarlate.

 

NOTURNO II

Nossos olhos nos pertencem —
não o dia.
Amor não nos pertence
nem a morte.
Apenas pousam na pérola mais fina.
Desce o luar
No flanco de rios precipitados
folhas se alongam
caules estremecem.

A noite já desfere
seu punhal de trevas.

 
MADURO PARA O CANTO

Maduro para o canto
vertes, cântaro,
a água pura
e suas sete cores
unindo lago e lago.
Barco em flor
rio correndo da prece
promessa em silêncio
da messe.

Sem pressa
o agapanto floresce.


         Extraído de ANDANÇAS 1948-1970.  Rio de Janeiro: Edição da Autora, 1970? 120 p.

            Indicado por Wagner Barja. Maio 2007.
                 
CANTO

O pássaro cantou
e os ramos vergaram
sob o peso do fruto
e o fruto cantou
sob o peso do pássaro
e o canto pousou
sobre o fruto
e os ramos cantaram.

 

NOITE

No declive da altura
poço de lumes.

Entre folhas
perpassa um vôo.

(Noite e alma
toque levíssimo
de palmas.)

Uma estrela cavalga a escuridão. 

 
O FOGO

O fogo acende-se no próprio nome
sete línguas ardem no coração da rosa
e se alastram pelo jardim
voltando depois ao próprio nome.
Se ao fogo perguntas: “É ele? És tu?”
crepitam centelhas. Um Serafim o abraça
e ao coração.

 
CONVERSA DOM PESSOA

Ai, não ter a vida provas de revisão
para mudar-lhe as vírgulas, acrescentar-lhe
                                     pontos de interrogação
e sobretudo passar a limpo dores e amores
arranjar vasos de flores, ter um gato de
                                                         estimação,
ouvir a rolinha a consolar-lhe a aflição...

Ai, não ter a vida provas de revisão
para endireitar-lhe as linhas, trocar palavras
e afinal arrancar as páginas todas do livro
e suprimir-lhe a edição.


            Extraído de JARDINS (esconderijos).  São Paulo: Edição da Autora, 1979.  125 p.

            Indicado por Wagner Barja. Maio 2007.
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De
O LEQUE
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007

“(...) as palavras da poeta, recortadas dos dez breves instantes desta suíte, que a um só tempo é dança e melodia, gesto e repouso, enigma e clareza. Ou, direto ao ponto: a sutil, inefável maravilha da grande poesia”.
    Antonio Fernando de Franceschi

IV

Sublinham os olhos
o leve movimento
do leque.  Como que anunciam
início e algo terminado.
Os dedos: promessa
ao jovem atento
esperando o que não sabe
do iluminado frêmito.


V

O sim-não do leque
rabisca sobre a face
algo que desaparece
com o sorriso.
Iluminura de renda
instrumento sutil
e sua música.

VII

O que eu daria
para ser leque em suas mãos.
O que eu seria — trêmula pérola
junto a um coração.
A aragem me levaria
A Mozart engastado a Mozart
Nessa emoção. O espaço:
Separando sonho e música.
O leque — ladrão sutil —
deixando-me apenas
um vago perfil. 


Fragmentos da obra, até então inédita, que a Fundação Moreira Salles publicou em homenagem à grande poeta, e que merece ser apoiada e levada ao grande público.

 
APPASSIONATA
De
APPASSIONATA
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007.
ISBN 978-85-86707-22-3

Obra póstuma publicada organizada pela filha Inês Ferreira da Silva Bianchi e editada com beleza e qualidade pelo IMS.

“Dora Ferreira da Silva se debruça sobre a coisa em si da palavra e da expressão poética, de modo que sua linguagem está de tal forma aderida à emoção e ao pensamento que nela se torna impossível vislumbrar quaisquer suturas operacionais.  Trata-se, por assim dizer, de uma linguagem inconsútil, tamanha é nela a fusão entre a forma e o fundo, o que a torna desde logo imune a qualquer decodificação que tente eviscerá-la como se fosse um animal de laboratório.”  Ivan Junqueira, no prefácio da obra.

                             
(...)
Vivos e mortos
perambulam nas estradas
um sorriso nos lábios.
O que dizem
no silêncio
agora pleno
da alma?
Appassionata.


O gesto preserva a
emoção e o brusco
perpassar de folhas mortas.
Gemem pássaros noturnos
fiéis da madrugada
até que o horizonte desperte
em sua luz dourada.

Dedos da memória
afagam e são cruéis:
tudo ressurge e se transfigura
no que poderia ser
se a chuva desabasse.
Só os relâmpagos
ao longe
de raios mudos.
(...)
                                                                                
De
HÍDRIAS
POEMAS DE DORA FERREIRA DA SILVA

São Paulo: Odysseus Editora, 2004
ISBN 85-88023-62-8 (capa dura)
85-8802--62-X (brochura)
[capa dura azul revestida de tela com aplique]

                          

APOLO HIPERBÓREO

Ele ama a distância além do inverno,
onde não declinam a luz radiosa e os cantos.

Quando se afasta, pássaros silenciam e a fonte
em Delfos quase se extingue. Lobos uivam.
Imensa é a noite fria em sua ausência.

Mas ouve! O jubiloso peã de novo repercute
nas pedras brilhantes. Corpos e olivais dourados
revivem na dança: o Citaredo retorna coroado de folhas.


NARCISO (1)

Lampeja o olhar que antes a toda a beleza
se esquivara. És tu, Narciso,
teu reflexo nas águas, ou a irmã
de gêmeo rosto e forma?
Não, não te afastas, porque a unidade
em duas se faria e o mundo das sombras ulula
à espera de tal luto. Permaneces inclinado
e adoras, sem saber se és tu, ou quem queres ver
no exasperado amor que as águas refletem.

A Morte veio enfim buscar-te, consternada,
vendo os olhos do estranho amante
fixos na flor nascida de teu sonho.

 
NARCISO (II)

Folhas incandescentes fizeram da fonte
vale de fulgores. Bebia Narciso sobre a onda
quando uma face viu de tal beleza
que a luz mais viva se tornou.
E Amor - cujas setas jamais puderam alcançar
seu coração esquivo — nele reinou e jamais do jovem
se apartava, que a seu chamado as águas acorria.
Insidiosa veio a Morte para o levar consigo,
deixando numa flor a forma de Narciso.

Dora Ferreira da Silva
De
Dora Ferreira da Silva
RETRATOS DA ORIGEM
São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1988

Capa: detalhe de um quadro a óleo de Edmar José de Almeida -
Retrato de Dora Ferreira da Silva (1972)

                         
CANTO IX

Teu nome
              de nada é feito
(que matéria poderá servi-lo?)
És o que antecede
                           o ver
                                   e inaudível
precedes o ouvir
                            O tato
                           o sabor
                           o cheiro
apenas em ti se reconhecem
antes que retornes
ao moldo do vazio

Quando vens
                   ultrapassas ideias
                                            pensamentos
que pretendem prender
                                  o antes
                                               depois
e ao mesmo tempo
                            agora

Menino
usas todas as máscaras para brincar
                                 e nos surpreendes!

Poupas nossa fragilidade
                                   com ecos
                                                fragrâncias
(passo no caminho
                            és tu
                                    e quem caminha)

Coisa não és
                   mas concedes graça
à curva de um caminho
                   às folhas aromáticas
a um contato de amor
                               Se te evolas
não é como quem abandona
                               mas pelo gosto
de repetir-te
                    em nós por outras vindas
grandes e pequenas
                            enquanto houver espaço
para o Amor
                  Mas este nome — o mais próximo —
também não basta!
                           

                                                         
De
Dora Ferreira da Silva
UMA VIA DE VER AS COISAS
São Paulo: Livraria Duas Cidades,  1973.  124 p.
 
                                 
AMORES

III
Não traçarei novos caminhos.
Entrelaçados, nascemos de raízes
mais fundas que saber.
És o que virá, se vieres.
E eu espero.  Véspera da morte,
agora que o amor é mudo ou canta sem parar.
E o canto um silêncio parece
de tão fundo viver, que a vida já se despe
de si mesma, e avança sem andar:
bem longe
ou perto
aberto dom
de
amar.

IV
Não o que dizíamos
nem o que víamos,
mas o olhar desviado,
taça em demasia.  E o que insistia:
os mesmos pórticos, a hora
na torre austera.  E tudo fazíamos
para não ouvir, calado,
o passo do passado
e não olhar, à janela cega,
um vulto debruçado
o olhar isento
do amor que não se vê
e, em fuga, se extravia.
 
 Fonte: 
FUNDAÇÃO MEMORIAL
Antônio Miranda 
  
http://www.memorial.sp.gov.br/memorial/AgendaDetalhe.do?agendaId=560
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/dora_ferreira_da_silva.html

terça-feira, 12 de abril de 2011

VICENTE FERREIRA DA SILVA - O FILÓSOFO NO BRASIL



A redescoberta da filosofia no Brasil III – 
Vicente Ferreira da Silva

– Vicente Ferreira da Silva

Por Felipe Cherubin

Vicente Ferreira da Silva nasceu em São Paulo e formou-se em Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, mas nunca exerceu a profissão, tendo-se dedicado inteiramente a vida acadêmica.

Em 1933, aproximou-se do grande matemático italiano Fantappié, então professor em São Paulo. Torna-se logo um dos primeiros leitores dos Principia mathematica de Russel e Whitehead e com a publicação de seu primeiro livro, Elementos de Lógica Matemática torna-se o primeiro a publicar um livro sobre este assunto no país. Com a vinda, em 1942, do lógico Willard Van Orman Quine, da universidade de Harvard, Vicente é convidado para ser seu assistente.

O contato com a filosofia alemã promove uma guinada em seu pensamento, que o aproxima cada vez mais das reflexões existenciais e conscienciológicas que tomam corpo em seu segundo livro, Ensaios Filosóficos (1948). Paralelamente, desenvolveu uma atividade importante que o aproxima da pedagogia filosófica de Ortega y Gasset: o jornalismo.

Em 1949 representa o Brasil no Congresso de Filosofia de Mendonza, ao lado de Eugen Fink, Nicolau Abbagnano,  Delfin Santos, além de exercer o cargo de diretor da divisão de Difusão Cultural da Reitoria da USP e de organizar os Seminários de Filosofia do Museu de Arte Moderna. Ainda neste ano funda, com Miguel Reale e outros intelectuais, o Instituto Brasileiro de Filosofia e, em seguida, a Revista Brasileira de Filosofia.

Seu terceiro livro, Exegese da Ação, sai em 1950, ano em que finaliza um de seus mais importantes trabalhos Dialética das Consciências, onde expressa de modo definitivo sua fenomenologia da existência.

Esta obra é apresentada na Faculdade de Filosofia da USP para o concurso de professor, mas sob o vão protesto de intelectuais, Vicente é impedido de concorrer ao cargo com o aviltante pretexto de não possuir diploma de Filosofia. Em 1951 publica Idéias para um novo conceito de homem, em 1953 Teologia e anti-humanismo e em 1954 colabora na organização do primeiro Congresso Internacional de Filosofia realizado no Brasil, nos quais se reúnem Enzo Paci, Julián Marías, Leopoldo Zea; Vicente é escolhido para fazer parte do Conselho Cientifico da coleção Rowohlts Deutsche Enzyklopaedie, ao lado de Mircea Eliade, Romano Guardini, Karl Kerényi, Robert Oppenheimer.

Em 1955, funda em São Paulo, juntamente com sua esposa, a poetiza Dora Ferreira da Silva, e Milton Vargas a revista Diálogo, na qual publica seus ensaios mais importantes sobre Filosofia da arte e religião. Em 1963, morre prematuramente de acidente de automóvel aos 47 anos de idade.

***
Rodrigo Petronio, organizador das obras completas do filósofo Vicente Ferreira da Silva, fala a seguir em entrevista exclusiva concedida à Dicta.com, sobre o homem e a obra.

Quem foi Vicente Ferreira da Silva?

Vicente foi muitas pessoas. Ele foi um pensador brasileiro marcado por uma atitude filosófica original. Não estava só preocupado em submeter o texto filosófico a um trabalho técnico ou a uma exegese filosófica, mas também incorporar os conceitos e as obras da filosofia a isso que eu chamo de uma atitude filosófica e a obra dele é um testemunho desta atitude, seja do ponto de vista da lógica matemática, em que ele está mais preocupado com o instrumental do pensamento, seja no período posterior, nos seus estudos ligados a fenomenologia e ao mito.

Como organizador da reedição das obras completas, você a organizou não só no conteúdo por meio de ensaios introdutórios e notas, mas também fisicamente (em 3 Volumes) ressaltando as 3 fases da filosofia de Vicente. 

Você poderia comentar esse processo de reorganização da obra?

A divisão da obra de Vicente em três fases é quase um consenso entre os especialistas que eu li e conheço no sentido de a identificarem, mas sempre didaticamente. O Antônio Brás Teixeira, que editou uma seleção da obra de Vicente em Portugal, fala dessas três fases; Constança Marcondes César, talvez a maior estudiosa de Vicente, também a sinaliza.
Na primeira fase, dedicada aos estudos da lógica matemática Vicente deixou algumas importantes contribuições, rendendo um elogioso ensaio do lógico brasileiro Newton da Costa e reconhecendo o valor desses estudos. 

Você poderia comentar essa fase?

O interesse de Vicente pela matemática começou desde a adolescência, mesmo tendo cursado Direito depois; desde o colégio já começou a tomar aulas particulares de matemática e se interessar por Filosofia. Essa primeira incursão dele pela lógica matemática foi um pouco natural e muito precoce; aos 20 anos ele já estava lendo os Principia Mathematica de Russel e Whitehead, ou seja, já estava incorporando um tipo de lógica, a chamada lógica formal, lógica simbólica, logística, isto é, são diversos nomes dados a uma lógica que tenta reestruturar e dar respostas àquilo que a lógica aristotélica não contemplava. Esse pioneirismo do Vicente é muito importante e Newton da Costa fala disso. 

Há um ensaio, por exemplo, do Euríalo Canabrava sobre o Vicente lógico, e diz que ele também já está esboçando muitas questões da lingüística que só viriam a tona nas décadas de 50 , 60 e 70. É como se ele já estivesse lidando ali com paradigmas ou com limites da linguagem que depois vão se tornar questões mesmo de debate internacional. Para mim, o importante do Vicente lógico, além do pioneirismo, é a maneira prudente que ele lida com lógica, ou seja,  não quer dar um golpe de estado na filosofia, substituindo toda a filosofia e toda a metafísica pela lógica, o que às vezes, em minha opinião, é o caso de Wittgenstein.

Vicente foi assistente do filósofo Willard Van Orman Quine, professor de Harvard, que foi aluno de Rudolph Carnap e A.N Whitehead, enquanto passava uma temporada no Brasil. Além disso, seu livro sobre lógica foi uma espécie de marco.

Sim. O livro Elementos de Lógica Matemática foi o primeiro livro no Brasil que trata de lógica matemática, ou seja, que trata da lógica desde esse ponto de vista novo, que tenta reformular – eu não diria romper – mas operar uma reformulação bem drástica com a lógica clássica. Há ensaios de estudos lógicos do Padre Feijó, Amoroso Costa tem estudos sobre lógica, mas o pioneiro – o primeiro livro de lógica matemática no Brasil - foi do Vicente e é de 1940.

Em sua segunda fase, a fase da filosofia da existência, Vicente foi um precursor do estudo da obra dos fenomenólogos e um interprete original do filósofo alemão Martim Heidegger. No entanto, o estudo de Heidegger lhe rendeu problemas, já que estávamos numa época em que este filósofo era visto com reservas nos meios acadêmicos brasileiros. 
 
Como foi isso?

Bom, tem um episódio que vale a pena comentar. Por exemplo, o professor Cruz Costa, que assumiu a cátedra de Filosofia da USP no lugar de Vicente e que foi o responsável pela formação de várias gerações, proibia seus alunos de citar Heidegger em qualquer circunstância em trabalhos acadêmicos. O limite da polarização ideológica chegava nesses termos. O Vicente como um heideggeriano era um pressuposto que já o isolava de alguns círculos, instituições e etc.

Primeiro, Vicente faz uma apologia ao trabalho fenomenológico de Sartre; contudo, depois ele o critica por ter se rendido a uma politização da filosofia de forma gradual, escapando assim do livre pensamento, tornando-se um ideólogo e fazendo de seu pensamento servo de determinados sistemas políticos.

Qual foi a relação do Vicente com a filosofia de Sartre?

Há dois ensaios de Vicente sobre Sartre. O primeiro que é muito elogioso e um segundo chamado Sartre: um equivoco filosófico. Nesse segundo ensaio, para o Vicente, Sartre transformou a filosofia da existência numa peça dentro da dialética material histórica, operando o que Marx operou com Hegel. A idéia de autonomia de Vicente é como se a filosofia fosse autotélica: a questão filosófica é a questão investigativa e não pode ser uma plataforma ideológica ou instrumentalizada. Ele foi um crítico ferrenho da razão burguesa instrumental; está a todo o momento tratando do clássico tema filosófico da autenticidade e da inautenticidade.

Na jornada intelectual do Vicente ele transparece ter sido um homem muito audaz, curioso, criativo e sempre perseguindo um caminho próprio, respondendo por seus próprios atos e por meio de suas próprias palavras, e isso ficará muito evidente na terceira fase (a fase mítico-aórgica) – uma fase marcada pela busca do divino, uma admissão da transcendência – ainda que tampouco religiosa no sentido de filiação a alguma das grandes tradições religiosas, marcado por um toque muito pessoal e peculiar.

Esta fase, que é porosa comparada à anterior, é a que mais me toca pela ousadia. É uma fase mais inacabada, em que os ensaios não são tão bem estruturados como o Dialética das Consciências. Todavia, a quantidade de lampejos e de aberturas ali presentes para a questão do pensamento são muitas. Vicente irá trabalhar muito na chave de Heidegger, Max Scheler, Schelling e do poeta Hölderlin: entre as noções do ser e do sagrado, da finitude e da dimensão transcendente.

Nesta fase, irá enfatizar cada vez mais o mito, a arte e a poesia. Para ele, o mito não é um ornamento, não é a mitologia dos povos arcaicos propriamente ditos, não é um epos literário, não é um princípio ornamental e nem estético – o mito é um principio de inteligibilidade do mundo, ou seja, uma espécie de raiz de onde brotam todas as representações, é o fundamento ontológico do real de onde brotam todas as configurações. Para Vicente, o mito é o radical, a raiz que uniria todas as perspectivas e cosmovisões, e mesmo a ciência dependeria da Mitologia, pelo menos como o Vicente a compreende.

Por que a preferência de Vicente pelo ensaio como estilo literário para exprimir sua filosofia?

Uma das virtudes do Vicente é que ele é um pensador muito sugestivo, e ele é breve. Nós percebemos uma quantidade muito grande de leituras, mas as conexões que ele estabelece com as leituras não fica evidente em todo encadeamento lógico que haveria para se chegar de A até Z. Há uma tendência para condensar. O próprio gênero do ensaio é um gênero em aberto, um gênero inacabado. Essa é a grande virtude do ensaio – não é exaustivo e também não é um tratado, ou seja, você não vai documentar tudo de existente, não vai expor passo a passo, não é demonstrativo. Acredito que foi essa a razão de sua escolha.

Quais foram os pensadores que mais contribuíram para a formação do Vicente?

E quais intelectuais nacionais e internacionais ele manteve contato e amizade?

Vicente dialogou com as filosofias da existência e a fenomenologia, incorporou elementos da história das religiões, da antropologia, arte e literatura. Ele começa com a lógica matemática na linha de Russel e Whitehead, mas a abandona tão logo se embrenha na fenomenologia das consciências seguindo os passos de Husserl, Scheler, Heidegger, Berdiaev, Zubiri e Ortega. Por fim, acolheu ainda contribuições de Schelling, dos mitólogos Bachofen, Kerényi, Eliade, Otto e Frobenius e dos poetas Rilke , Lawrence e Hölderlin. 

No Brasil, cultivou amizade e diálogo com Eudoro de Souza, Agostinho Silva, Miguel Reale, Hélio Jaguaribe, Vilem Flusser e Guimarães Rosa. Do exterior, ele manteve grande amizade e contato com Gabriel Marcel, Julian Marias, Bagolini, Grassi, entre outros.

Vicente fez parte de um capítulo importante do pensamento brasileiro, que se desenrolava em São Paulo entre as décadas de 40 a 60 do século XX. Qual era o panorama da intelectualidade paulista neste período?
Havia basicamente quatro núcleos. O primeiro gravitava em torno de Miguel Reale e do Instituto Brasileiro de Filosofia, um segundo se concentrou na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Rua Maria Antônia, embrião da futura USP. Um terceiro, que foi o grupo de Vicente, e por fim o do filósofo Mário Ferreira dos Santos, trabalhando de forma quase que totalmente independente.

Vicente foi contemporâneo de Mário Ferreira dos Santos. Como você compararia a obra desses dois pensadores?

São dois dos pensadores mais importantes de língua portuguesa no século 20. Em termos de estudos metafísicos e pitagóricos, o Mário é o um dos maiores do mundo, o Vicente talvez seja um dos mais audaciosos e originais, em nível internacional também. As matrizes deles são diferentes, porque o Vicente vem de uma crítica da metafísica enquanto o Mário é um continuador e aprofundador excepcional da Metafísica. 

O Vicente parte do pressuposto que o pensamento de tipo metafísico está muito preso a raiz aristotélico-tomista, um pensamento de certa forma substancialista. A idéia dele é resgatar nos pré-socráticos, poetas e mitos arcaicos uma nova perspectiva do pensar. Também está o tempo todo dialogando com Kant, Fichte, Hegel, os Românticos, Heidegger e a fenomenologia.

O Mário dialoga com uma filosofia muito antiga, que é o pitagorismo, mas que é uma filosofia que estrutura toda a unidade do mundo real, a partir dos matema, a Mathesis Magiste, os arithmoi arkhai, ou seja, os princípios arcanos, que são princípios arquetípicos: leis invariáveis, eternas, universais. 

O Mário solidifica mais a idéia de uma tradição, de um retorno. Já a fundamentação do Vicente é mais fluida, mais próxima de um Heráclito, por exemplo, do que de um pitagorismo ou da escolástica. Ambos são filósofos no sentido mais profundo da palavra.

O Vicente dizia que o pensador é aquele que chega na tradição mas ao mesmo tempo tem que ser uma espécie de colonizador do futuro, está sempre propondo novos conceitos, arriscando mais, no sentido da fluidez, do condensado de idéias e de novas perspectivas.

Rodrigo Petrônio é escritor, editor e professor.

O desenho acima foi criado por Cido Gonçalves, 
caricaturista, ilustrador e infografista. 
Iniciou a carreira no jornal Folha de S. Paulo no inicio da década dos anos 90,  passando depois pelas redações do jornal O Estado de S. Paulo e revista Veja. 
 
Felipe Cherubin é jornalista, 
formado em Direito e estudou Filosofia 
na Harvard Extension School.

 Fonte:
    Dicta &Contradicta
 
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Data do post: 1 de setembro de 2010
Tags: filosofia brasileira, Vicente Ferreira da Silva