sábado, 23 de outubro de 2010

ÚLTIMAS PALAVRAS



O que eles disseram antes do último suspiro
 
Ainda vão dizer que a morte nunca mais foi a mesma depois que o psicodélico Timothy Leary a curtiu numa boa, via Internet. Ao contrário de Woody Allen, ele não só não temia a morte como adorou estar vivo quando ela bateu à sua porta. Como ela há muito se anunciara, sobrou tempo para Leary bolar suas últimas palavras com o mesmo capricho de quem vai, não para os campos elíseos, mas para a entrega do Oscar. Na hora h, preferiu ser breve: "Why not? Yeah!" (Por que não? Sim!).

Breve, impávido, mas nada brilhante.

Em seu lugar, Woody Allen talvez dissesse algo mais inteligente ou mais engraçado. "Rosebud", por exemplo. Ou, então, "Misericórdia divina, será que Rico chegou ao fim?"

(Quase todo mundo sabe que "Rosebud" foi a última coisa que o personagem de Orson Welles em Cidadão Kane pronunciou antes de morrer. Poucos, no entanto, ainda se lembram do epílogo de Alma no Lodo, quando o gângster Rico Bandello, aliás Edward G. Robinson, crivado de balas pela polícia, perguntava aos céus se sua hora afinal havia chegado.)

Mas é bem possível que Woody Allen, ao bater as botas, trema nas bases, perca o senso de humor e não se saia tão galhardamente quanto o poeta americano Hart Crane e o romancista inglês H.H. Munro, mais conhecido como Saki. Ao se jogar ao mar de um navio que o trazia do México, em 1932, Crane não se esqueceu de se despedir da turma do convés: "Adeus, pessoal!" Saki, apesar de atingido mortalmente por um tiro, em plena guerra, ainda encontrou forças para ordenar a um tabagista a seu lado: "Apague a porcaria desse cigarro!" Bravos rapazes. Enfrentar a morte com galhardia é proeza pra macho. Apesar das aparências, Oscar Wilde era um deles. Segundos antes de abotoar o paletó, pediu mais uma taça de champanhe e, sem perder o velho aplomb, comentou: "Estou morrendo como sempre vivi, além das minhas posses."

A despedida de Wilde é uma das minhas favoritas. Páreo duro com a de Goethe ("Mais luz!"), talvez a mais conhecida de todas depois do perdão que Cristo reivindicou na cruz para seus algozes.

Parece que sempre escurece quando entregamos a alma a Deus. "Acendam as luzes", ordenou o escritor O. Henry em seu leito de morte. "Eu não quero ir pra casa no escuro", acrescentou - e em seguida esticou as canelas. Acontece que na casa para onde ele ia tampouco havia luz, pois, segundo consta, do "outro lado" reinam as trevas - ao menos enquanto não decidem o nosso destino final, se o paraíso ou o inferno. Precavido, o filósofo Jean-Jacques Rousseau, ao empacotar, anunciou: "Vou ver o sol pela última vez."

Dorothy Parker morreu dormindo. É de se esperar que ela fizesse alguma gracinha antes de dar seu último suspiro. Na verdade ela fez, porém muito antes de vestir a camisola de madeira, quando escolheu os dizeres de sua lápide: "Pardon my dust" (Desculpe o pó), debochada alusão à substância a que a morte nos remete. Nisso igualou-se ao poeta inglês John Keats, que embora tenha sucumbido à tuberculose na presença de uma testemunha (o pintor Joseph Severn, a quem disse: "Vou morrer naturalmente. Não se assuste. Graças a Deus chegou a minha hora", tendo ao fundo uma sonata de Brahms), será sempre lembrado pela inscrição que sugeriu para a sua tumba: "Sinto as flores crescendo em cima de mim."
A propósito, nem todas as pessoas engraçadas que não morrem dormindo expiram com um chiste na ponta da língua. Sérgio Porto, o saudoso Stanislaw Ponte Preta, não soltou uma piada ao ser fulminado por um enfarte em 1968, mas a maneira como pediu à empregada que se comportasse naquele momento traiu o humorista: "Não olhe para mim, não, Lena, que eu estou apagando." Também era uma criada que o ex-campeão mundial de pesos pesados Max Baer tinha a seu lado quando, no ano seguinte, entregou suas luvas ao Todo Poderoso: "Oh, Deus, lá vou eu."
O estilo é o homem. Assis Chateaubriand exibiu sua autoridade até o fim: "Não vou escrever nem editar mais nada!". Se Voltaire foi trivial ("Me deixem morrer em paz"), Diderot nem a um passo da eternidade parou de filosofar. "O primeiro passo rumo à filosofia é a incredulidade", sentenciou em seu leito de morte. Charles Darwin mostrou-se modesto na hora de ajustar suas contas com o Criador. "Eu não tenho menos medo de morrer que os outros", confessou - e, como os outros, foi virar comida de minhoca.

No extremo oposto, encontramos Hegel, que mordeu o pó com a seguinte observação: "Só um homem conseguiu me entender... e não me entendeu direito." Um século mais tarde, outro gênio da opacidade, James Joyce, se despediria desta com uma pergunta enigmática: "Será que ninguém entende?". Joyce foi fiel a si mesmo até na hora de entregar a rapadura.

Seu conterrâneo George Bernard Shaw não ficou atrás. Ranzinza como ele só, irritou-se com a enfermeira que se esfalfava para mantê-lo vivo: "Irmã, você está tentando me manter vivo como uma peça de antiguidade, mas eu já acabei, cheguei ao fim, estou morrendo." E morreu mesmo. Com uma antiga idade, 94 anos.

Outro modelo de autenticidade, o empresário P.T. Barnum, dono dos mais luxuosos picadeiros da América no final do século passado, despediu-se do mundo dos vivos falando do que mais entendia: negócios. "Como foi a venda de ingressos hoje no Madison Square Garden?", perguntou a um assistente - e apagou. Se não me engano, demorou a morrer, padecendo um longo coma, do qual nunca emergiu. Tal não foi o caso do teatrólogo e grande frasista da Broadway Wilson Mizner, que ao sair do coma ainda teve cabeça para dar um fora no padre que tentava convencê-lo dos benefícios da confissão: "Por que me abrir com você se já falei com o seu patrão?"

As últimas palavras de Graciliano Ramos também foram proferidas na volta de um coma. Não, ele não se queixou de estar perto do fim ("Estou acabado", teria dito, segundo algumas versões). A víuva do escritor, Heloísa Ramos, conta que na verdade ele saiu do coma, olhou para ela, deu um sorriso crivado de ternura e dor, encostou a mão espalmada no rosto dela, sussurou "mamãezinha" e dormiu para sempre.

A morte do velho Graça não foi a única a ter mais de uma versão. Há quem sustente que Rabelais, ao morrer, disse estar indo "para o grande talvez". Outros, no entanto, asseguram que ele, bem ao seu estilo, ordenou aos circunstantes: "Desçam as cortinas, a farsa acabou." As last words de Byron também produziram discussões, a meu ver irrelevantes. Afinal, que diferença existe entre "agora, vou dormir" e "tenho de dormir agora"? Controvérsia mais procedente suscitaram as últimas palavras de Edgar Allan Poe. Para uns, ele teria clamado "Deus tenha pena de minha pobre alma". Segundo outros, Poe implorou que lhe estourassem os miolos com um tiro.

O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen e o compositor alemão Arnold Schoenberg saíram de cena do mesmo jeito. A enfermeira entra no quarto e diz que ele (Ibsen, em 1906; Schoenberg, em 1951) está melhorando. "Ao contrário", contesta o moribundo, morrendo logo depois. Com o escritor inglês D.H. Lawrence ocorreu justamente o inverso. Suas últimas palavras traíam um otimismo descabido: "Estou melhor agora."
Tolstoi preocupou-se mais com a forma de sua morte ("E os camponeses? Como é que os camponeses morrem?") do que com o seu, digamos, conteúdo. Sócrates revelou-se um moribundo tão pragmático quanto P.T. Barnum. Antes de baixar sepultura, pediu a Cristo que saldasse uma dívida para ele. Platão? Limitou-se a agradecer por ter nascido homem, grego e contemporâneo de Péricles.

Nossa maior glória literária, Machado de Assis, foi mais abrangente que Platão. Cercado por seis amigos, entre os quais Euclides da Cunha, José Veríssimo e Coelho Neto, reservou o que ainda restava de seu fôlego para admitir que "a vida é boa". E só então partiu de vez.

Para amainar um pouco o tom forçosamente fúnebre desta página, ressuscito a mais divertida de todas as despedidas desta vida. Protagonista: o trêfego José do Patrocínio Filho, finado em 1929. Quando estava nas últimas, arruinado por drogas e biritas, sem apetite para nada, seu médico apelou para um alimento especial: leite humano. Ao ver a dificuldade com que a enfermeira tirava o leite dos belos e fartos seios de uma doadora profissional, para depositá-lo numa minúscula colher, Zequinha do Patrocínio arregalou os olhos e sugeriu: "Doutor, não é melhor eu mamar?". E em seguida foi mamar no além.

Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no "Caderno2", de O Estado de S.Paulo, a 15 de junho de 1996.

Fonte:
Digestivo Cultural
Sergio Augusto

domingo, 17 de outubro de 2010

FERNANDO PESSOA - O POETA


Vivo sempre no presente. 
O futuro, não o conheço. 
O passado, já o não o tenho. 

Pesa-me um como a possibilidade de tudo, 

o outro como a realidade de nada. 

Não tenho esperança nem saudades…

que posso presumir da minha vida de amanhã,
Senão que será o que não presumo, 

o que não quero, o que me acontece de fora, 

Até através da minha vontade…

não quero mais da vida do que senti-la perder-se
Nestas tardes imprevistas 


Fernando Pessoa 



 .
. Um conhecimento contemplativo de Deus:

Traçadas as coordenadas principais, 
a nível do pensamento religioso de Fernando Pessoa, 
pondo, para já, de parte a longa teorização 
e defesa do Neopaganismo português, 
atentemos nalguns textos reveladores daquilo 
que podemos considerar ser o seu percurso poético /religioso, 
na busca do Conhecimento ou Gnose:

Por volta de 1912, tinha o poeta então 24 anos, 
e no mesmo ano em que publicava na «Águia» 
os seus primeiros artigos sobre a moderna poesia portuguesa, 
surge-nos um texto belíssimo intitulado «PRECE» que passo a transcrever: 

Prece:
«Senhor, que és o céu e a terra,
e que és a vida e a morte! 

O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu! 
Tu és os nossos corpos e as nossas almas 
e o nosso amor és tu também. 
Onde nada está tu habitas e onde tudo estás - 
(o teu templo) - eis o teu corpo.

Dá-me alma para te servir e alma para te amar. 
Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra,
ouvidos para te ouvir no vento e no mar, 
e mãos para trabalhar em teu nome.

Torna-me puro como a água e alto como o céu.
Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos 
nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. 
Faz com que eu saiba amar os outros 
como irmãos e servir-te como a um pai.
[...]
Minha vida seja digna da tua presença. 
Meu corpo seja digno da terra, tua cama. 
Minha alma possa aparecer diante de ti 
como um filho que volta ao lar.

Torna-me grande como o Sol,
 para que eu te possa adorar em mim;
e torna-me puro como a lua,
para que eu te possa rezar em mim;
e torna-me claro como o dia 
para que eu te possa ver sempre em mim
e rezar-te e adorar-te.

Senhor, protege-me e ampara-me.
Dá-me que eu me sinta teu. 
Senhor, livra-me de mim.»

Este texto, em que António Quadros encontra,
a meu ver com razão, 
ecos do Hino ao Sol do faraó monoteísta Akhenaton
e afinidades com os cantos de S.Francisco de Assis ,
marca, segundo o mesmo autor, o «1ºmarco de uma longa e árdua peregrinação», revelando 
«toda uma vivência interior de transcendência que reúne a visão do ser humano, entre o animal e o espiritual».

Nele é visível «uma enorme exigência de pureza e de Absoluto, 
um sentimento de adoração, a consciência profunda da vanidade egolátrica, um desejo de entrega e de abandono no divino», 
traduzindo, igualmente,
«o efeito de uma experiência íntima, secreta




Pouco depois desta «Prece», em 1913, tinha então 25 anos,
parece o Poeta ter tido uma primeira experiência de revelação, 
de êxtase quase místico, como afirma Quadros. Trata- - se do poema em 5 partes,

ALÉM-DEUS.

Na 1ªparte,
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando - 

O que é ser rio e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco -
Mesmo o meu estar a pensar.

Tudo 
- e o mundo em seu redor -
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.

Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus..

 
Na 2ºparte de Além-Deus, 
o poeta procura explicar como tudo se passara: 

PASSOU (título da 2ªparte):

«Passou, fora de Quando,/
De Porquê, e de Passando...»;

na 3ªparte, intitulada A VOZ DE DEUS, 
reconhece na percepção do indizível, 
a fusão total do Eu e do universo 
a partir da audição da voz de Deus:

A VOZ DE DEUS

«Brilha uma voz na noite...
De dentro de Fora ouvi-a .
Ó Universo, eu sou-te..../» 

...
«Cinza de idéia e de nome
Em mim, e a voz:
Ó mundo,
Semente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que pra Deus me afundo.»

Este inundar-se em Deus equivale à QUEDA 
(título do 4ºpoema da série)


A QUEDA .

«Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Se ter Eu nem Ali.»
 
Tal queda/mergulho no inefável,
no indizível é o encontro do Além-Deus . 

«Além-Deus! 
Além Deus! Negra calma ..
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido
...» 

O 5º e último poema, 
de título de ressonância esotérica ( e surrealista) 
BRAÇO SEM CORPO BRANDINDO UM GLÁDIO ­ 
«é o regresso à realidade quotidiana, lugar da dúvida, 
da interrogação, do espanto, da incapacidade de aferir, 
pela razão humana, aquilo que por instantes envolveu o ser inteiro, 
deixando atrás de si um sentimento de irrealidade» - conclui assim o poema:

«Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...

Entre o que digo e o que calo
Existo? 
Quem é que me vê?
Erro-me...»

Fonte
Nave da Palavra
Leiria, Fevereiro e Março de 2001
Amélia Pinto Pais