Cônego Fernandes Pinheiro (1825 – 1876)
Tradução de Cândido Lusitano
LIÇÃO I
ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA
Antes de analisarmos as diversas fases da literatura portuguesa, convém que digamos algumas palavras sobre a origem da língua que lhe serviu de instrumento.
Pensamos com o Sr. A. Herculano que Portugal é uma nação nova, nascida no XII século num ângulo da Galiza, constituída sem atenção às divisões políticas anteriores, di latando-se pelo território do Al-Gharb sarraceno 1, e rejeitamos portanto a tradição que a faz descendente dos antigos celtas, que por mais de três mil anos souberam conservar a sua vitalidade a despeito de todas as invasões por que teve de passar a Península Ibérica.
Cremos ainda com o mesmo douto historiador que o moderno Portugal não ocupa exatamente o lugar de antiga Lusitânia: por isso que os territórios a que se deu tal nome se estendiam pelas províncias espanholas muito além das modernas fronteiras, ao passo que na primeira época não passavam, pelo lado do sul, além do Tejo, e na segunda findavam ao norte pelo Douro.
1 Hist. de Port. tom. I, intr, pág. 47.
Sabemos que fazia parte integrante da monarquia lio nesa o pequeno condado de Portucale, encravado na Galiza, até ao tempo de D. Afonso VI, que o constituiu em feudo quase que independente em favor de Henrique de Borgonha, casado com sua filha D. Tereza.
Asseguraram-lhe a independência as vitórias de D. Afonso Henriques scbre os mouros e sobre seu primo D. Afonso VII, que se fizera proclamar imperador das Espanhas; e assim começou a sua nacionalidade.
Para esclarecimento deste ponto cumpre que retrocedamos alguns séculos e entremos em algumas indagações históricas. Refere-nos a tradição que em remotas eras duas emigrações sucessivas de iberos e de celtas partiram da Ásia para se estabelecerem na Espanha, e que depois de haverem por largo tempo disputado a posse do país, acabaram por confundir-se em um só povo, que tomou o nome de celtiberos, subdividindo-se em várias tribos, como as dos cantabros, asturos e vascônios ao norte, e calaicos e lusitanos ao ocidente.
Vieram mais tarde fixar-se na Península colônias fenícias, ocupando as melhores posições marítimas, enquanto as gregas se estabeleciam nas ribas do Douro e do Minho. Este amálgama de raças sofreu ainda outra alteração com a chegada dos cartagineses, a quem a fama das riquezas ibéricas desafiava a cobiça. Posto que oriundos dos fenícios, haviam eles caldeado o sangue com o dos líbios, ou mouros, formando uma casta mista, conhecida pela denominação de libifenícios.
Ignora-se o tempo que foi mister despender para fazer destes diversos elementos um povo homogêneo; mas o certo é que já no VI século antes da nossa era Cartago contava na Espanha súditos leais e dedicados, que em prol dos seus interesses iam verter o sangue em longínquos climas.
Uma porção do existente Portugal, habitada pelos tur-detanos (celtofenícios) e pelos celtas das margens do Ana (Guadiana), havendo persistido em guardar a sua independência, foi submetida por Hamílcar e obrigada a reconhecer o poderio cartaginês.
Chegou porém o tempo em que, na eloqüente frase do Sr. Herculano, “o abraço de ferro da república romana devera cingir a Espanha para só a arrojar de si exausta e transfigurada nas mãos dos bárbaros do norte”. Por duzentos anos prolongou-se a guerra da conquista, e é um dos seus mais belos episódios a corajosa resistência do selvagem montanhês Viriato, que à frente dos lusitanos, desbaratou sucessivamente os exércitos de Mânlio e Pisão. Força porém foi ceder à disciplina e valor das legiões; e o domínio romano estendeu se por toda a Península, à exceção unicamente dos desvios dos Pirinéus, onde continuou com a sua agreste independência a raça indomável dos iberos, que resistira às anteriores invasões.
Quem tiver estudado cuidadosamente a história se recordará de que os romanos não empregavam só as armas para submeter nações; confiando por demais na superioridade de sua civilização introduziam entre os povos vencidos as suas colônias, leis e costumes; faziam troca dos seus deuses e sem ferir por forma alguma a suscetibilidade religiosa, conseguiam impor suas crenças, vazando os mais heterogêneos elementos no grande molde da sua vigorosa organização.
Semelhante sistema aplicado à Espanha produziu os mais felizes resultados, e os restos das nacionalidades que a conquista cartaginesa não tivera tempo de fundir, entraram na vasta sociedade romana.
Quando no V século se desmoronava o colosso romano, que esmagara o mundo, vimos Gerôncio, governador de Espanha, abrir passagem pelos montes aos vândalos, alanos e suevos, que dividiram entre si o território que lhes entregara a traição.
Ferozes e sanguinários esses filhos das brenhas não procuraram aliar-se com os naturais; assim pois, a sua passagem foi semelhante à dos meteoros, não tardando em serem substituídos pelos visigodos, que, mais brandos e civilizados, não repeliam os vencidos, ligando-se a eles por consórcios e fazendo com que um só código regulasse as transações de ambas as raças. Tornou-se o nome de godo genérico, e, como muitas vezes acontece, adotaram os conquistadores a religião, leis e costumes dos conquistados.
Tal era o estado da Península quando a conquista árabe lhe trouxe nova e importante modificação. A vingança do conde Juliano abriu a Espanha aos sarracenos e as águas do Guadelete se tingiram do mais puro sangue cristão. D. Pelágio, salvando na gruta de Covadonga as relíquias da nacionalidade goda, e começando essa Ilíada de oito séculos, apresenta-nos um dos mais curiosos espetáculos da história humana.
Este pequeno reino de Oviedo, oculto nas montanhas das Astúrias, que, como imenso Briareu, estrangula os emirados muçulmanos, suplanta o califado de Córdova, e vai nas pessoas de Fernando e Isabel expulsar de Alhambra o último herdeiro de Abd-el-Rahman, é a mais brilhante demonstração de que jamais perece um povo que ilesa conserva a sua fé religiosa.
Profundos vestígios etnográficos deveram deixar as raças que sucessivamente estanciaram na Espanha; mas foram-se eles pouco a pouco apagando em virtude das novas invasões; e raros são os que se encontram na língua que falamos relativas as primeiras épocas.
Algumas poucas palavras célticas e fenícias, conservadas principalmente nas denominações geográficas, revelaram-se às pesquisas de nossos doutos filólogos: quanto porém aos vocábulos gregos, parece que nos foram transmitidos pelos romanos, havendo-se já perdido o uso des:e idioma na Península, bem como o do cartaginês.
Foi portanto a língua latina quase que a única falada por muitos séculos na Espanha, e alguns grandes nomes da sua literatura, como Séneca, Lucano e Marcial, viram ali a luz do dia. Não falava porém o povo um latim clássico, porque nem na própria Roma isso acontecia, como no-lo testifica Cícero; e a linguagem vulgar, transplantada pelos soldados e empregados subalternos da administração, mesclou-se com os dialetos indígenas, formando o dialeto rústico, ou popular, dsnde se derivou o romano, romance ou romanense, base dos modernos idiomas da raça latina.
Por mais pasmosa contudo que fosse a influência do latim, para o que poderosamente contribuíram as causas que havemos indicado, a que mais tarde se juntou a ação da prédica e liturgia cristã, não se estendia ela aos campos; porque, como muito bem observa o Sr. Guizot, a política dos conquistadores nas Gálias e nas Espanhas fora concentrar a população dentro dos muros das cidades para fazê-las esquecer até a sua língua nativa. Serviu porém um elemento, com que se não contava, de perpetuar os vestígios das antigas nacionalidades; queremos falar da escravidão.
Peçamos ao Sr. A. Herculano que nos explique este curioso fenômeno: “País domado pelas armas, a Península devera ter visto cair muitos de seus filhos na servidão. Era por meo de escravos que os romanos cultivavam as terras, e é sabido a que ponto de tirania a escravidão chegou entre eles.
Os servos agricultores foram os mais oprimidos pela desuman!dade e capricho dos senhores do mundo. Longe da conversação civil, tratados ainda pior que os animais, tendo comumente por morada os cárceres subterrâneos das granjas, chamados ergástulos, sem proteção nas leis e tribunais, porque a morte ou a vida dependia da vontade do senhor, estes homens, malditos do mundo, e cuja sorte seria ainda terrível, comparada com a dos negros de uma roça da América, alheios à civilização, que se esquecera deles, cheios de terror e de ódio para com os habitantes das cidades, deviam conservar tenazmente os costumes e a linguagem mista de céltico, fenício, grego e púnico, em tudo aquilo que por seus donos lhes fosse consentido.
Quando porém as leis dos imperadores e a influência do cristianismo foram tornando mais suave a sorte daqueles desgraçados, quando a decadência do império e as invasões germânicas confundiram tudo, essa raça espúria, atirada ao meio de uma sociedade moribunda, cujos usos e linguagem se corrompiam rapidamente, devia, confundindo-se com ela, trazer-lhe também a sua parte de corrupção. É a esta causa que nós atribuímos principalmente os vestígios de tradições célticas, fenícias, gregas e púnicas, que ainda subsistem não só na língua mas também nos costumes.
Para essa alquimia lingüística trouxeram os visigodos seu contingente; e posto que se amoldassem eles aos usos e c:s-tumes dos povos vencidos, não deixaram de legar-lhes muitas locuções germânicas que se descobrem no nosso idioma.
Não podiam outrossim deixar de ressentir-se os dialetos hispânicos do longo domínio árabe; assim pois numerosos são os vocábulos que deles recebemos, e cuja enumeração sistemática fez um douto eclesiástico2.
Apesar da diversidade de crenças e da aversão de raça, viveram os cristãos em grande contacto com os sarracenos; porque, como se exprime o Sr. Villemain, “essa presença de tão grande número de muçulmanos, essa longa partilha do mesmo território, esse trato habitual, essa riqueza, esse gênio industrioso dos mouros, adoçava a aspereza da antipatia religiosa V
Na decomposição da língua romana cada província procedia por um método particular; a Catalunha, a Biscaia, o Aragão e a Galiza impregnavam os seus dialetos de palavras árabes e lançavam os germes de futuras línguas, que sem dúvida se formariam na Espanha se o guanté de Carlos V não lhes desse a unidade política, religiosa e literária.
espanhola, fazendo-a derivar em linha reta dos antigos lusitanos, constituíu-se um povo independente pelo valor de seus filhos, e organizou um diverso idioma pelo lapso do tempo e perseverança de seus literatos.
Garfo destacado do tronco lionês, falando um dialeto mui próximo ao galego, conseguiu afastar-se cada vez mais dessa origem e, aproximando-se ao latim, criou uma língua sonora, enérgica, expressiva, que estranhos e imparciais juizes tanto gabam.
Concorreram igualmente para a organização da língua portuguesa o provençal e o normando que falavam os companheiros do conde Henrique de Borgonha”, e que com ele se estabeleceram nas margens do Douro; oferecendo-nos o romance d’Amadis de Gaula um padrão dessa literatura dos trovadores, tão geralmente apreciada no meio-dia da Europa. Muitos termos que hoje nos parecem galicismos datam do berço da monarquia, e foram usados pelos primeiros escritores p:rtu-gueses; provando-se desta arte que também este elemento entrou na formação da nossa língua.
Colige-se do que acabamos de dizer a futilidade da cen-sura que nos fazem alguns escritores estrangeiros de falarmos um dialeto do espanhol, como o genovês e o veneziano são para a bela língua de Dante. Deixemos que lhes responda um dos maiores engenhos que neste século honraram as letras portuguesas: “Grande semelhança há, diz Garrett, entre o português e o espanhol; nem podia ser menos quando suas capitais origem são as mesmas e comuns; porém tão parecidas como são pelas raízes de derivação, no modo, no sistema dessas mesmas derivações, na combinação e amálgama de idênticas substâncias e princípios, se vê todavia que diversos agentes entraram, e que mui variado foi o resultado que a cada um proveio.
Filhas dos mesmos pais, diversamente educadas, distintas feições, vário gênio, porte e ademã tiveram: há contudo nas feições de ambas aquele ar de família que à primeira vista se colhe.
“Este ar de família enganou os estrangeiros, que sem mais profundar decidiram logo que o português não era língua própria. Esse achaque de decidir afoitamente de tudo é velho, sobretudo entre franceses, que são o povo do mundo entre o qual (por filáucia de certo) menos conhecimento há das alheias cousas1“
Se tão nobre é a genealogia da língua portuguesa, se tão elevado posto ocupa na família neo-latina, porque não é ela mais conhecida e estimada? Causas diversas para isso concorrem, como em outro lugar examinaremos, não sendo das últimas o pouco apreço que lhe dão os seus naturais, que desprezam o seu estudo para engolfarem-se no de intrincados, pobres e ásperos idiomas.
Fungar vice colis, acutum
Reddere quae ferrum valet,
exors ipsa secondi Horat., ad Pisones,
vrs. 304-305.
Por contente me dou,
fazendo as vezes de pedra d’amolar,
que em si não tendo virtude de cortar,
dá corte ao ferro.
Tradução de Cândido Lusitano
LIÇÃO I
ORIGEM DA LÍNGUA PORTUGUESA
Antes de analisarmos as diversas fases da literatura portuguesa, convém que digamos algumas palavras sobre a origem da língua que lhe serviu de instrumento.
Pensamos com o Sr. A. Herculano que Portugal é uma nação nova, nascida no XII século num ângulo da Galiza, constituída sem atenção às divisões políticas anteriores, di latando-se pelo território do Al-Gharb sarraceno 1, e rejeitamos portanto a tradição que a faz descendente dos antigos celtas, que por mais de três mil anos souberam conservar a sua vitalidade a despeito de todas as invasões por que teve de passar a Península Ibérica.
Cremos ainda com o mesmo douto historiador que o moderno Portugal não ocupa exatamente o lugar de antiga Lusitânia: por isso que os territórios a que se deu tal nome se estendiam pelas províncias espanholas muito além das modernas fronteiras, ao passo que na primeira época não passavam, pelo lado do sul, além do Tejo, e na segunda findavam ao norte pelo Douro.
1 Hist. de Port. tom. I, intr, pág. 47.
Sabemos que fazia parte integrante da monarquia lio nesa o pequeno condado de Portucale, encravado na Galiza, até ao tempo de D. Afonso VI, que o constituiu em feudo quase que independente em favor de Henrique de Borgonha, casado com sua filha D. Tereza.
Asseguraram-lhe a independência as vitórias de D. Afonso Henriques scbre os mouros e sobre seu primo D. Afonso VII, que se fizera proclamar imperador das Espanhas; e assim começou a sua nacionalidade.
Até 1140 espanhóis e portugueses
constituíam um só povo, falavam uma só língua
com ligeiras modificações.
Para esclarecimento deste ponto cumpre que retrocedamos alguns séculos e entremos em algumas indagações históricas. Refere-nos a tradição que em remotas eras duas emigrações sucessivas de iberos e de celtas partiram da Ásia para se estabelecerem na Espanha, e que depois de haverem por largo tempo disputado a posse do país, acabaram por confundir-se em um só povo, que tomou o nome de celtiberos, subdividindo-se em várias tribos, como as dos cantabros, asturos e vascônios ao norte, e calaicos e lusitanos ao ocidente.
Vieram mais tarde fixar-se na Península colônias fenícias, ocupando as melhores posições marítimas, enquanto as gregas se estabeleciam nas ribas do Douro e do Minho. Este amálgama de raças sofreu ainda outra alteração com a chegada dos cartagineses, a quem a fama das riquezas ibéricas desafiava a cobiça. Posto que oriundos dos fenícios, haviam eles caldeado o sangue com o dos líbios, ou mouros, formando uma casta mista, conhecida pela denominação de libifenícios.
Ignora-se o tempo que foi mister despender para fazer destes diversos elementos um povo homogêneo; mas o certo é que já no VI século antes da nossa era Cartago contava na Espanha súditos leais e dedicados, que em prol dos seus interesses iam verter o sangue em longínquos climas.
Uma porção do existente Portugal, habitada pelos tur-detanos (celtofenícios) e pelos celtas das margens do Ana (Guadiana), havendo persistido em guardar a sua independência, foi submetida por Hamílcar e obrigada a reconhecer o poderio cartaginês.
Chegou porém o tempo em que, na eloqüente frase do Sr. Herculano, “o abraço de ferro da república romana devera cingir a Espanha para só a arrojar de si exausta e transfigurada nas mãos dos bárbaros do norte”. Por duzentos anos prolongou-se a guerra da conquista, e é um dos seus mais belos episódios a corajosa resistência do selvagem montanhês Viriato, que à frente dos lusitanos, desbaratou sucessivamente os exércitos de Mânlio e Pisão. Força porém foi ceder à disciplina e valor das legiões; e o domínio romano estendeu se por toda a Península, à exceção unicamente dos desvios dos Pirinéus, onde continuou com a sua agreste independência a raça indomável dos iberos, que resistira às anteriores invasões.
Quem tiver estudado cuidadosamente a história se recordará de que os romanos não empregavam só as armas para submeter nações; confiando por demais na superioridade de sua civilização introduziam entre os povos vencidos as suas colônias, leis e costumes; faziam troca dos seus deuses e sem ferir por forma alguma a suscetibilidade religiosa, conseguiam impor suas crenças, vazando os mais heterogêneos elementos no grande molde da sua vigorosa organização.
Semelhante sistema aplicado à Espanha produziu os mais felizes resultados, e os restos das nacionalidades que a conquista cartaginesa não tivera tempo de fundir, entraram na vasta sociedade romana.
Quando no V século se desmoronava o colosso romano, que esmagara o mundo, vimos Gerôncio, governador de Espanha, abrir passagem pelos montes aos vândalos, alanos e suevos, que dividiram entre si o território que lhes entregara a traição.
Ferozes e sanguinários esses filhos das brenhas não procuraram aliar-se com os naturais; assim pois, a sua passagem foi semelhante à dos meteoros, não tardando em serem substituídos pelos visigodos, que, mais brandos e civilizados, não repeliam os vencidos, ligando-se a eles por consórcios e fazendo com que um só código regulasse as transações de ambas as raças. Tornou-se o nome de godo genérico, e, como muitas vezes acontece, adotaram os conquistadores a religião, leis e costumes dos conquistados.
Tal era o estado da Península quando a conquista árabe lhe trouxe nova e importante modificação. A vingança do conde Juliano abriu a Espanha aos sarracenos e as águas do Guadelete se tingiram do mais puro sangue cristão. D. Pelágio, salvando na gruta de Covadonga as relíquias da nacionalidade goda, e começando essa Ilíada de oito séculos, apresenta-nos um dos mais curiosos espetáculos da história humana.
Este pequeno reino de Oviedo, oculto nas montanhas das Astúrias, que, como imenso Briareu, estrangula os emirados muçulmanos, suplanta o califado de Córdova, e vai nas pessoas de Fernando e Isabel expulsar de Alhambra o último herdeiro de Abd-el-Rahman, é a mais brilhante demonstração de que jamais perece um povo que ilesa conserva a sua fé religiosa.
Profundos vestígios etnográficos deveram deixar as raças que sucessivamente estanciaram na Espanha; mas foram-se eles pouco a pouco apagando em virtude das novas invasões; e raros são os que se encontram na língua que falamos relativas as primeiras épocas.
Algumas poucas palavras célticas e fenícias, conservadas principalmente nas denominações geográficas, revelaram-se às pesquisas de nossos doutos filólogos: quanto porém aos vocábulos gregos, parece que nos foram transmitidos pelos romanos, havendo-se já perdido o uso des:e idioma na Península, bem como o do cartaginês.
Foi portanto a língua latina quase que a única falada por muitos séculos na Espanha, e alguns grandes nomes da sua literatura, como Séneca, Lucano e Marcial, viram ali a luz do dia. Não falava porém o povo um latim clássico, porque nem na própria Roma isso acontecia, como no-lo testifica Cícero; e a linguagem vulgar, transplantada pelos soldados e empregados subalternos da administração, mesclou-se com os dialetos indígenas, formando o dialeto rústico, ou popular, dsnde se derivou o romano, romance ou romanense, base dos modernos idiomas da raça latina.
Por mais pasmosa contudo que fosse a influência do latim, para o que poderosamente contribuíram as causas que havemos indicado, a que mais tarde se juntou a ação da prédica e liturgia cristã, não se estendia ela aos campos; porque, como muito bem observa o Sr. Guizot, a política dos conquistadores nas Gálias e nas Espanhas fora concentrar a população dentro dos muros das cidades para fazê-las esquecer até a sua língua nativa. Serviu porém um elemento, com que se não contava, de perpetuar os vestígios das antigas nacionalidades; queremos falar da escravidão.
Peçamos ao Sr. A. Herculano que nos explique este curioso fenômeno: “País domado pelas armas, a Península devera ter visto cair muitos de seus filhos na servidão. Era por meo de escravos que os romanos cultivavam as terras, e é sabido a que ponto de tirania a escravidão chegou entre eles.
Os servos agricultores foram os mais oprimidos pela desuman!dade e capricho dos senhores do mundo. Longe da conversação civil, tratados ainda pior que os animais, tendo comumente por morada os cárceres subterrâneos das granjas, chamados ergástulos, sem proteção nas leis e tribunais, porque a morte ou a vida dependia da vontade do senhor, estes homens, malditos do mundo, e cuja sorte seria ainda terrível, comparada com a dos negros de uma roça da América, alheios à civilização, que se esquecera deles, cheios de terror e de ódio para com os habitantes das cidades, deviam conservar tenazmente os costumes e a linguagem mista de céltico, fenício, grego e púnico, em tudo aquilo que por seus donos lhes fosse consentido.
Quando porém as leis dos imperadores e a influência do cristianismo foram tornando mais suave a sorte daqueles desgraçados, quando a decadência do império e as invasões germânicas confundiram tudo, essa raça espúria, atirada ao meio de uma sociedade moribunda, cujos usos e linguagem se corrompiam rapidamente, devia, confundindo-se com ela, trazer-lhe também a sua parte de corrupção. É a esta causa que nós atribuímos principalmente os vestígios de tradições célticas, fenícias, gregas e púnicas, que ainda subsistem não só na língua mas também nos costumes.
Para essa alquimia lingüística trouxeram os visigodos seu contingente; e posto que se amoldassem eles aos usos e c:s-tumes dos povos vencidos, não deixaram de legar-lhes muitas locuções germânicas que se descobrem no nosso idioma.
Não podiam outrossim deixar de ressentir-se os dialetos hispânicos do longo domínio árabe; assim pois numerosos são os vocábulos que deles recebemos, e cuja enumeração sistemática fez um douto eclesiástico2.
Apesar da diversidade de crenças e da aversão de raça, viveram os cristãos em grande contacto com os sarracenos; porque, como se exprime o Sr. Villemain, “essa presença de tão grande número de muçulmanos, essa longa partilha do mesmo território, esse trato habitual, essa riqueza, esse gênio industrioso dos mouros, adoçava a aspereza da antipatia religiosa V
Na decomposição da língua romana cada província procedia por um método particular; a Catalunha, a Biscaia, o Aragão e a Galiza impregnavam os seus dialetos de palavras árabes e lançavam os germes de futuras línguas, que sem dúvida se formariam na Espanha se o guanté de Carlos V não lhes desse a unidade política, religiosa e literária.
Portugal, como já vimos,
pôde cedo emancipar-se,
formando distinta nacionalidade, e,
sem renegar a sua origem
espanhola, fazendo-a derivar em linha reta dos antigos lusitanos, constituíu-se um povo independente pelo valor de seus filhos, e organizou um diverso idioma pelo lapso do tempo e perseverança de seus literatos.
Garfo destacado do tronco lionês, falando um dialeto mui próximo ao galego, conseguiu afastar-se cada vez mais dessa origem e, aproximando-se ao latim, criou uma língua sonora, enérgica, expressiva, que estranhos e imparciais juizes tanto gabam.
Concorreram igualmente para a organização da língua portuguesa o provençal e o normando que falavam os companheiros do conde Henrique de Borgonha”, e que com ele se estabeleceram nas margens do Douro; oferecendo-nos o romance d’Amadis de Gaula um padrão dessa literatura dos trovadores, tão geralmente apreciada no meio-dia da Europa. Muitos termos que hoje nos parecem galicismos datam do berço da monarquia, e foram usados pelos primeiros escritores p:rtu-gueses; provando-se desta arte que também este elemento entrou na formação da nossa língua.
Colige-se do que acabamos de dizer a futilidade da cen-sura que nos fazem alguns escritores estrangeiros de falarmos um dialeto do espanhol, como o genovês e o veneziano são para a bela língua de Dante. Deixemos que lhes responda um dos maiores engenhos que neste século honraram as letras portuguesas: “Grande semelhança há, diz Garrett, entre o português e o espanhol; nem podia ser menos quando suas capitais origem são as mesmas e comuns; porém tão parecidas como são pelas raízes de derivação, no modo, no sistema dessas mesmas derivações, na combinação e amálgama de idênticas substâncias e princípios, se vê todavia que diversos agentes entraram, e que mui variado foi o resultado que a cada um proveio.
Filhas dos mesmos pais, diversamente educadas, distintas feições, vário gênio, porte e ademã tiveram: há contudo nas feições de ambas aquele ar de família que à primeira vista se colhe.
“Este ar de família enganou os estrangeiros, que sem mais profundar decidiram logo que o português não era língua própria. Esse achaque de decidir afoitamente de tudo é velho, sobretudo entre franceses, que são o povo do mundo entre o qual (por filáucia de certo) menos conhecimento há das alheias cousas1“
Se tão nobre é a genealogia da língua portuguesa, se tão elevado posto ocupa na família neo-latina, porque não é ela mais conhecida e estimada? Causas diversas para isso concorrem, como em outro lugar examinaremos, não sendo das últimas o pouco apreço que lhe dão os seus naturais, que desprezam o seu estudo para engolfarem-se no de intrincados, pobres e ásperos idiomas.
Li
Fonte:
Fonte: editora Cátedra – MEC – 1978
CONSCIÊNCIA:.ORG
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http://www.consciencia.org/origem-da-lingua-portuguesa
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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