segunda-feira, 16 de maio de 2011

RESSONÂNCIAS DA ARTE, ÉTICA E POÉTICA



Elenice Groetaers de Moraes

 A arte para os gregos era designada de "technè". Este termo não era considerado uma técnica em particular como a pintura ou uma habilidade artesanal, mas correspondia ao saber mais amplo com relação à natureza ou as coisas em sua totalidade.
 Aristóteles designava a technè como um modo de saber, uma
 forma de discernimento, prudência que orienta, como exemplo,
 a "arte política". 
 
A reflexão filosófica considerou a obra de arte 
como portadora de um verdadeiro saber. 
Foi decifrada como a força 
de enfatizar o conteúdo de verdade. 
 
Em Kant situava-se na reflexão sobre o belo e o sublime. A reflexão
 hegeliana baseava no sentido de uma expressão cada vez mais
 clara, menos simbólica. Assim, direcionava para uma verdade
 mais profunda, isto é, mais interior ao sujeito humano. Após
 as reflexões de Heidegger e Merleau-Ponty deixa-se a
 pretensão de legislar sobre a arte, de decidir quanto à sua
 classificação.
A arte não é mais tratada como objeto de
 especulação metafísica.
A arte é vista como uma imagem da
 verdade de nossa existência ou 
de nossa relação com o mundo.

 A arte é uma criação e não o domínio de determinadas
 situações instrumentais que se exige do criador. Institui-se
 como um saber desocultante da verdade essencial que
 transcende tanto o nível da constatação quanto o da
 contestação.

 A linguagem interpretativa situa-se em nível capaz de revelar
 uma experiência ontológica que é a relação do homem com
 aquilo que o constitui homem. Podemos dizer que o foco de
 sentido vai além dos acontecimentos e das experiências das
 coisas. Interpretar é um eclodir, surgir e vir à luz naquilo
 que pertence a cada um.   Na  hermenêutica, uma maneira de
 tornar explícito o solo ontológico sobre o qual as ciências
 do espírito podem se construir.

 No sistema capitalista moderno, a velha questão do bem-viver,
 da compreensão do ser, fica eliminada em proveito do
 funcionamento de um sistema manipulado. Atitudes de caráter
 ideológico mascaram seu sentido ou mesmo sua realidade
 contribuem para surgirem conflitos em nossa sociedade. As
 instituições aparecem como um bloco indivisível de poder e de
 repressão. A sociedade vê apenas a exterioridade colorida: a
 veste, o costume, a anticultura, em suma, uma imagem
 alternadamente terna e agressiva.

 O desafio que se disfarça sob o conflito da sociedade
 repressiva e da liberdade selvagem, da ideologia do conflito
 a todo preço está contido na questão: como poderemos conjugar
 os progressos da liberdade do ser humano? As instituições
 tornaram-se estranhas e alienantes, pesadas e insuportáveis.

A sociedade está fascinada pelo fantasma 
de uma liberdade sem
instituições. 
 
A liberdade selvagem conduz necessariamente
 à fúria da destruição. 
 
A intolerância selvagem deve ser
 combatida em suas raízes, através de uma educação constante
 que tenha início na mais tenra infância com a prevalência das
 artes, da poesia, das virtudes, valores e suas
 interpretações, antes que se torne uma casca comportamental
 espessa e dura demais.

 Num processo amplo de mudança deslocam-se as estruturas e
 processos centrais das sociedades modernas. Logo, podemos
 mencionar:  a crise de identidade.  As identidades modernas
 estão descentradas e fragmentadas. Esta fragmentação das
 culturas de raça, etnia, gênero, classe, sexualidade e
 nacionalidade no passado forneciam sólidas bases como
 indivíduos na sociedade. Algumas vezes chamada de
 descentração ou deslocamento do sujeito, pois existe perda de
 um sentido de si mesmo, o que no passado era mais estável. 
 
O indivíduo está se tornando fragmentado. 
 
Antes vivia com uma identidade unificada e estável.
 À medida que os sistemas multiplicam de significação 
e representação culturais, surgem
 desconcertantes e múltiplas identidades.
   Nos tempos modernos, com o predomínio da tecnologia, a
 angústia reina, porque o sagrado, condição de toda presença
 intacta, inclusive a um deus, se retira, se apaga. 
 
A poesia pode ajudar-nos 
a agüentar esta insuportável indigência 
e a atravessar esta "noite do mundo", 
que é o dia tecnológico. 
 
A técnica dessacraliza, porque ela detesta o que não pode ser
 dominado e finalmente o nega. Esta impossibilidade de
 domínio, de uma manipulação que ela não consegue realizar,
 quer se trate de sofrimento, quer de alegria, do amor ou da
 morte, só o canto poético consegue expressar e talvez
 preservar
 
 O sentido da obra vige no instituir mundo.
 O mundo é o sentido da physis 
manifestado no poema.
 No poema, a physis se revela em seu sentido. 
 
 A eclosão de mundo na obra dos poetas
 é o real se manifestando como linguagem. 
 
É o ethos do real.
 Ethos significa morada,
 maneira de ser habitualmente,
 caráter. 
 
Considerado como disposição natural de uma pessoa
 segundo seu corpo e sua alma, os costumes de alguém conforme
 a sua natureza. Nossa inclinação natural busca o prazer e
 foge da dor segundo o  modo como somos afetados pela
 sensação. 
O apetite-desejo é uma paixão, um páthos. 
A paixão
 é um movimento natural e violento. 
 
Natural, porque fomos feitos  de uma matéria carente, desejante e passiva que busca
 vencer a carência e a passividade. Violento, porque a paixão
 suscita movimentos contrários ao bem de nossa natureza, ao
 fim  que, como humanos, estamos destinados, isto é, a vida de
 ação.
A verdade da obra poética 
é o aspecto manifesto do que se oculta.
A interpretação se constitui como diálogo,
especulação e ethos. 
 
Estas dimensões só são passíveis de concretização a partir 
da obra poética como manifestação de mundo.
 Interpretar é abrir-se para a escuta da verdade e
 sentido do Ser como ethos.  Interpretar é um abrir para a
 vigência do real, pela qual se dá na interpretação, uma
 experiência poética. O termo ética deriva de ethos.
 Existe a importância ética para nós hoje, numa época de
 capitalismo avançado ou mesmo selvagem, onde a grande maioria
 se sustenta ou empobrece graças ao seu trabalho pessoal e à
 tecnologia.
 Questionamos: qual seria a relação entre ética e
 poesia? Esta questão intriga e faz pensar. A poesia exige que
 nos deparemos a um só tempo, com a ânsia de alcançar o
 divino. 

 O desamparo e distanciamento do homem
 acentuam-se na modernidade 
e é uma das razões da demanda ética tornar-se
 cada vez mais intensa.
 
 Numa reflexão dando voz à arte, à
 poesia, à interpretação e à ética, entendemos como modos de
 celebração da vida. Celebração que nos oferece a
 possibilidade firme e a manifestação vigorosa de dar sentido
 à existência com libertação.

A reflexão ético-social do nosso século 
trouxe umaobservação na massificação atual:
talvez a maioria não se comporte mais eticamente, 
pois não vive imoral, mas
amoralmente. 
 
Os meios de comunicação de massa, as ideologias
 e os aparatos econômicos já não permitem mais a existência de
 sujeitos livres, de cidadãos conscientes e participantes, de
 consciências com capacidade julgadora. Falar da ética
 significa falar de liberdade. Falar de liberdade é falar de
 poesia. 
Falar de poesia é lembrar de Vinicius de Moraes.
 Deixou-nos o poema intitulado O Velho e a flor:

Por céus e mares eu andei
Vi um poeta e vi um rei
Na esperança de saber o que é o amor
Ninguém sabia me dizer
E eu já queria até morrer
Quando um velhinho com uma flor assim falou.
O amor é o carinho
É o espinho que não se vê em cada flor
É a vida quando
Chega sangrando
Aberta em pétalas de amor.

 O amor tem a mesma extensão que a justiça. Ele é sua alma,
 seu impulso, sua motivação profunda. Assim é a justiça, a
 realização institucional e social do amor. Para enfrentar
 vertigens da ordem e da liberdade selvagem, torna-se
 necessário refazer todo um trabalho de pensamento.
 Quando uma objetividade total domina o sujeito, não há mais
 espaço para a liberdade e conseqüentemente nem para a ética.

O homem sábio é livre sempre, 
mesmo que esteja acorrentado ou
aprisionado. 
 
A ética se preocupa com as formas humanas de
 resolver as contradições entre: necessidade e possibilidade,
 tempo e eternidade, individual e social, econômico e moral,
 o corporal e psíquico, o natural e cultural e entre a
 inteligência e a vontade. 
 
O problema da massificação se
 refere a formas de relações sociais
 onde o indivíduo se perde e se desvaloriza.
 A  vida de maneira mais ética é neste
 sentido mais livre e mais humana.

 Numa época onde há o consumismo desenfreado, a massificação,
 a crise de identidade, a sobrevalorização do trabalho
 industrializado, da rentabilidade e da capitalização, do
 pensamento calculador e da técnica, a crise que pode levar ao
 abismo. Entre as máscaras, as noites e os simulacros do
 horizonte pós-moderno, estamos cada vez mais fragmentados,
 cada vez mais distante da verdade, cada vez mais desprendidos
 de pensar.

 Como poderia a poesia apresentar alguma relevância?  A
 poética  constitui uma força vitalizadora e valorizadora que
 recupera o reduto do inexplicável, enquanto a tecnociência
 repressora se apodera dos indivíduos distanciando da
 apreciação e fundamentação da arte, da interpretação e da
 ética. É preciso parar e pensar nesta engrenagem cega de toda
 uma articulação do poder. Pensamos em falar da poesia como a
 morada do homem, enquanto ser existente no mundo e não
 propriamente do problema  enfocado pela análise sócio-
 política-econômica. 
 
O poeta experencia a linguagem como mundo,
 como manifestação da diferença, da alteridade do mundo
 e da coisa.  

O corresponder em que o homem escuta propriamente
 o apelo da linguagem é a saga que fala no elemento da poesia.
 Quanto mais poético um poeta, mais livre, ou seja, mais
 aberto e preparado para acolher o inesperado e seu dizer. Com
 maior pureza ele entrega o que diz ao parecer daquele que o
 escuta com dedicação.  Ditar poeticamente é medir. Na poesia
 acontece com propriedade o que todo medir é no fundo de sua
 essência. O homem precisa de uma medida que vá ao encontro de
 toda a dimensão.

 Finalmente, a poesia é a tomada de medida e, na verdade, em
 favor do habitar humano. A medida para a poesia é o divino. O
 poeta na palavra cantante faz apelo a todas as claridades que
 instauram a fisionomia do céu e  todas as sonâncias de seus
 cursos e ares, trazendo à luz e ao som o que assim se faz
 apelo... Por isso a poesia é a capacidade fundamental do modo
 humano de habitar. 
 
O homem consegue ditar poeticamente segundo a medida 
pela qual a essência é apropriada àquilo que
 o homem é capaz, assim fazendo uso de sua essência, de sua
 morada, deixa ressonâncias na arte, na ética e na poética...

 Fonte:
Revista Garrafa N* 2-2004
 
 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
 Faculdade de Letras
 Elenice Groetaers de Moraes
 Mestranda em Ciência da Literatura (Poética)
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/ensaios/grotaers.txt
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/revista_garrafa2.htm
 Sejam felizes todos os seres Vivam em paz todos os seres. 
Sejam abençoados todos os seres.

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