quarta-feira, 13 de abril de 2011

DORA FERREIRA DA SILVA - POESIAS


 
DORA FERREIRA DA SILVA
(1918-2006)

Autora de livros como Andanças, Talhamar, Retratos de Origem, Poemas da Estrangeira e Hídrias. Foi três vezes ganhadora do Prêmio Jabuti. Recebeu também o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2000, por sua obra Poesia Reunida, editado pela Topbooks.

Como tradutora, destacam-se seus trabalhos com autores como Rilke, Saint-John Perse, San Juan de la Cruz, Hörderlin e Jung. Também atuou como editora, fundando a revista Diálogos, juntamente com seu marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva. Depois, criou a revista Cavalo Azul, para difusão da poesia. Atualmente, funcionava em sua casa, um Centro de Estudos de Poesia com o mesmo nome.
 

TEXTOS EM PORTUGUÊS / TEXTO EN ESPAÑOL
                 


CÂNTICOS

I

Tenho-te um amor de mansidões
rebanho lento e branco passeando na alvorada
tenho-te um amor tranqüilo e trêmulo
não se música ou se constelações

tenho-te um amor de eternidades
em vagas renascentes — brando som de flauta
chamando as superfícies distraídas
para a reconcentração definitiva

II

Como um ramo de úmidas rosas
quisera estar na sala em que respiras
o aroma de tuas primaveras
Como um cesto de frutos derramados
quisera ser a oferta abandonada
na mesa simples da tua eternidade

 

AO SOL

Naufragas na noite
em pompas de luz e imensidade
todo germe palpita na semente
e da nova manhã ressurges
clara divindade
nua a carnação sob o manto escarlate.

 

NOTURNO II

Nossos olhos nos pertencem —
não o dia.
Amor não nos pertence
nem a morte.
Apenas pousam na pérola mais fina.
Desce o luar
No flanco de rios precipitados
folhas se alongam
caules estremecem.

A noite já desfere
seu punhal de trevas.

 
MADURO PARA O CANTO

Maduro para o canto
vertes, cântaro,
a água pura
e suas sete cores
unindo lago e lago.
Barco em flor
rio correndo da prece
promessa em silêncio
da messe.

Sem pressa
o agapanto floresce.


         Extraído de ANDANÇAS 1948-1970.  Rio de Janeiro: Edição da Autora, 1970? 120 p.

            Indicado por Wagner Barja. Maio 2007.
                 
CANTO

O pássaro cantou
e os ramos vergaram
sob o peso do fruto
e o fruto cantou
sob o peso do pássaro
e o canto pousou
sobre o fruto
e os ramos cantaram.

 

NOITE

No declive da altura
poço de lumes.

Entre folhas
perpassa um vôo.

(Noite e alma
toque levíssimo
de palmas.)

Uma estrela cavalga a escuridão. 

 
O FOGO

O fogo acende-se no próprio nome
sete línguas ardem no coração da rosa
e se alastram pelo jardim
voltando depois ao próprio nome.
Se ao fogo perguntas: “É ele? És tu?”
crepitam centelhas. Um Serafim o abraça
e ao coração.

 
CONVERSA DOM PESSOA

Ai, não ter a vida provas de revisão
para mudar-lhe as vírgulas, acrescentar-lhe
                                     pontos de interrogação
e sobretudo passar a limpo dores e amores
arranjar vasos de flores, ter um gato de
                                                         estimação,
ouvir a rolinha a consolar-lhe a aflição...

Ai, não ter a vida provas de revisão
para endireitar-lhe as linhas, trocar palavras
e afinal arrancar as páginas todas do livro
e suprimir-lhe a edição.


            Extraído de JARDINS (esconderijos).  São Paulo: Edição da Autora, 1979.  125 p.

            Indicado por Wagner Barja. Maio 2007.
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De
O LEQUE
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007

“(...) as palavras da poeta, recortadas dos dez breves instantes desta suíte, que a um só tempo é dança e melodia, gesto e repouso, enigma e clareza. Ou, direto ao ponto: a sutil, inefável maravilha da grande poesia”.
    Antonio Fernando de Franceschi

IV

Sublinham os olhos
o leve movimento
do leque.  Como que anunciam
início e algo terminado.
Os dedos: promessa
ao jovem atento
esperando o que não sabe
do iluminado frêmito.


V

O sim-não do leque
rabisca sobre a face
algo que desaparece
com o sorriso.
Iluminura de renda
instrumento sutil
e sua música.

VII

O que eu daria
para ser leque em suas mãos.
O que eu seria — trêmula pérola
junto a um coração.
A aragem me levaria
A Mozart engastado a Mozart
Nessa emoção. O espaço:
Separando sonho e música.
O leque — ladrão sutil —
deixando-me apenas
um vago perfil. 


Fragmentos da obra, até então inédita, que a Fundação Moreira Salles publicou em homenagem à grande poeta, e que merece ser apoiada e levada ao grande público.

 
APPASSIONATA
De
APPASSIONATA
São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2007.
ISBN 978-85-86707-22-3

Obra póstuma publicada organizada pela filha Inês Ferreira da Silva Bianchi e editada com beleza e qualidade pelo IMS.

“Dora Ferreira da Silva se debruça sobre a coisa em si da palavra e da expressão poética, de modo que sua linguagem está de tal forma aderida à emoção e ao pensamento que nela se torna impossível vislumbrar quaisquer suturas operacionais.  Trata-se, por assim dizer, de uma linguagem inconsútil, tamanha é nela a fusão entre a forma e o fundo, o que a torna desde logo imune a qualquer decodificação que tente eviscerá-la como se fosse um animal de laboratório.”  Ivan Junqueira, no prefácio da obra.

                             
(...)
Vivos e mortos
perambulam nas estradas
um sorriso nos lábios.
O que dizem
no silêncio
agora pleno
da alma?
Appassionata.


O gesto preserva a
emoção e o brusco
perpassar de folhas mortas.
Gemem pássaros noturnos
fiéis da madrugada
até que o horizonte desperte
em sua luz dourada.

Dedos da memória
afagam e são cruéis:
tudo ressurge e se transfigura
no que poderia ser
se a chuva desabasse.
Só os relâmpagos
ao longe
de raios mudos.
(...)
                                                                                
De
HÍDRIAS
POEMAS DE DORA FERREIRA DA SILVA

São Paulo: Odysseus Editora, 2004
ISBN 85-88023-62-8 (capa dura)
85-8802--62-X (brochura)
[capa dura azul revestida de tela com aplique]

                          

APOLO HIPERBÓREO

Ele ama a distância além do inverno,
onde não declinam a luz radiosa e os cantos.

Quando se afasta, pássaros silenciam e a fonte
em Delfos quase se extingue. Lobos uivam.
Imensa é a noite fria em sua ausência.

Mas ouve! O jubiloso peã de novo repercute
nas pedras brilhantes. Corpos e olivais dourados
revivem na dança: o Citaredo retorna coroado de folhas.


NARCISO (1)

Lampeja o olhar que antes a toda a beleza
se esquivara. És tu, Narciso,
teu reflexo nas águas, ou a irmã
de gêmeo rosto e forma?
Não, não te afastas, porque a unidade
em duas se faria e o mundo das sombras ulula
à espera de tal luto. Permaneces inclinado
e adoras, sem saber se és tu, ou quem queres ver
no exasperado amor que as águas refletem.

A Morte veio enfim buscar-te, consternada,
vendo os olhos do estranho amante
fixos na flor nascida de teu sonho.

 
NARCISO (II)

Folhas incandescentes fizeram da fonte
vale de fulgores. Bebia Narciso sobre a onda
quando uma face viu de tal beleza
que a luz mais viva se tornou.
E Amor - cujas setas jamais puderam alcançar
seu coração esquivo — nele reinou e jamais do jovem
se apartava, que a seu chamado as águas acorria.
Insidiosa veio a Morte para o levar consigo,
deixando numa flor a forma de Narciso.

Dora Ferreira da Silva
De
Dora Ferreira da Silva
RETRATOS DA ORIGEM
São Paulo: Roswitha Kempf Editores, 1988

Capa: detalhe de um quadro a óleo de Edmar José de Almeida -
Retrato de Dora Ferreira da Silva (1972)

                         
CANTO IX

Teu nome
              de nada é feito
(que matéria poderá servi-lo?)
És o que antecede
                           o ver
                                   e inaudível
precedes o ouvir
                            O tato
                           o sabor
                           o cheiro
apenas em ti se reconhecem
antes que retornes
ao moldo do vazio

Quando vens
                   ultrapassas ideias
                                            pensamentos
que pretendem prender
                                  o antes
                                               depois
e ao mesmo tempo
                            agora

Menino
usas todas as máscaras para brincar
                                 e nos surpreendes!

Poupas nossa fragilidade
                                   com ecos
                                                fragrâncias
(passo no caminho
                            és tu
                                    e quem caminha)

Coisa não és
                   mas concedes graça
à curva de um caminho
                   às folhas aromáticas
a um contato de amor
                               Se te evolas
não é como quem abandona
                               mas pelo gosto
de repetir-te
                    em nós por outras vindas
grandes e pequenas
                            enquanto houver espaço
para o Amor
                  Mas este nome — o mais próximo —
também não basta!
                           

                                                         
De
Dora Ferreira da Silva
UMA VIA DE VER AS COISAS
São Paulo: Livraria Duas Cidades,  1973.  124 p.
 
                                 
AMORES

III
Não traçarei novos caminhos.
Entrelaçados, nascemos de raízes
mais fundas que saber.
És o que virá, se vieres.
E eu espero.  Véspera da morte,
agora que o amor é mudo ou canta sem parar.
E o canto um silêncio parece
de tão fundo viver, que a vida já se despe
de si mesma, e avança sem andar:
bem longe
ou perto
aberto dom
de
amar.

IV
Não o que dizíamos
nem o que víamos,
mas o olhar desviado,
taça em demasia.  E o que insistia:
os mesmos pórticos, a hora
na torre austera.  E tudo fazíamos
para não ouvir, calado,
o passo do passado
e não olhar, à janela cega,
um vulto debruçado
o olhar isento
do amor que não se vê
e, em fuga, se extravia.
 
 Fonte: 
FUNDAÇÃO MEMORIAL
Antônio Miranda 
  
http://www.memorial.sp.gov.br/memorial/AgendaDetalhe.do?agendaId=560
http://www.antoniomiranda.com.br/poesia_brasis/sao_paulo/dora_ferreira_da_silva.html

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