terça-feira, 12 de abril de 2011

DORA FERREIRA DA SILVA - POETA


Dora Ferreira da Silva

Caros amigos,

Quem lê os poemas da paulista  Dora Ferreira da Silva logo aprende a conviver e se encantar com a leveza dos pássaros que pousam e levantam vôo ao longo de toda a obra. É quase um encantamento, um jogo mágico. Pássaros e música.

Reconhecida como alta expressão da poesia meditativa no Brasil, Dora é também tradutora, principalmente do alemão. É dela a versão mais conhecida entre nós das Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke (poesia.net n. 50). Também pelos filtros poéticos de Dora Ferreira da Silva passaram poemas de Hölderlin e Novalis, Saint-John Perse e San Juan de la Cruz.

Além de poeta, Dora destacou-se como editora de duas  importantes revistas de cultura: Diálogo, nos anos 50, ao lado do marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva (1916-1963); e Cavalo Azul, nos anos 80. A primeira era uma publicação de idéias e a outra, mais voltada para a poesia.

A obra poética de Dora Ferreira da Silva foi compilada em 1999 no volume Poesia Reunida (Topbooks), do qual foram extraídos os textos abaixo.
Dora Ferreira da Silva faleceu em 7 de abril de 2006, aos 86 anos.

Um abraço,
Carlos Machado
(11/04/2006)

     Mulher e pássaros

Dora Ferreira da Silva


    NASCIMENTO DO POEMA

    É preciso que venha de longe
    do vento mais antigo
    ou da morte
    é preciso que venha impreciso
    inesperado como a rosa
    ou como o riso
    o poema inecessário.

    É preciso que ferido de amor
    entre pombos
    ou nas mansas colinas
    que o ódio afaga
    ele venha
    sob o látego da insônia
    morto e preservado.

    E então desperta
    para o rito da forma
    lúcida
    tranqüila:
    senhor do duplo reino
    coroado
    de sóis e luas.

                             De Andanças (1948-1970)



    O VENTO

    Na palma do vento
    pouso a fronte. Nele confio.
    A quem confiaria senão a ele
    este rude labor?

    Abandono-me à tormenta
    (lumes mastros
    gaivotas do mar próximo).

    Enreda-me a noite.
    Mas dele são os dedos leves
    que me fecham os olhos. E é manhã.

                                 De Jardins (Esconderijos) (1979)
   
    
    MULHER E PÁSSARO

    Voltamos ao jardim
    ao banco lavado pela chuva.
    Pedimos o verde ao verde
    a flor à flor
    sem quebrar-lhe a haste. 
Bastaria a manhã.
    (Nossa presença
    desalinha ar e folhas
    num frêmito.)

    Mas se nada pedimos
    como quem dorme seguindo a linha natural
    do corpo
    respiramos o puro abandono:
    um pássaro alveja o azul (sem par)
    ultrapassa o muro do possível
    e assim damos um ao outro
    a súbita presença
    do Céu.
    
                             De Talhamar (1982)
     
 
    PARTITURA COM LUA
    Notação de pássaros

    no fio da rua:
    mínimas semínimas pausas.
    Sobre o piano rosas estremecem.
    Cadências de alma sobressaltam um público
    desalento e ao relento ressoam
    algumas dissonâncias (tropel de potros
    presos numa sala).
Mas por acaso em pura sinfonia
    pássaros refazem a partitura
    no heptacorde dos fios da rua.

    Ei-la tão plena do dia findo azulado —
    a lua soberana e alta
    do sono deste outono.


                             De Poemas em Fuga (1997)
 
Haicai


As sombras amigas
pouco a pouco se adensaram:
agora verei.

Ó desesperados:
lamentáveis tartarugas
de pernas pro ar
 POESIA

Agora

Agora que no vagar dos pensamentos
chamo-te - pai - da estação da infância
como se pudesses voltar no rápido só para me embalar,
fecho os olhos dentro de tuas pálpebras.
És minha invenção de amor. Olhos melancólicos
os teus. Eu contigo em degredo.

Difícil tocar a face desse segredo cada vez mais longe
e partir e também ficar, embora encontrada a chave
[da porta mais secreta.
Se eu pudesse dizer: seja a paisagem de seda azul
e o último sol fortíssimo do ocaso
- eu liberta enfim de tuas pupilas.
Um rio passaria desenhado pela mão mais fina. Passa uma
[pluma apenas uma
no rio acordado.
 
Valsas de Esquina de Mignone


Só um pássaro
e seu peso de orvalho tocando
o chão como se foram teclas.
Passa onde a graça
ilumina a cidade de ferro
subitamente atenta a essa beleza.

Nos jardins teimam rosas
delicadamente.
Violetas africanas
salpicam de ouro
muros escuros
e as princesas purpúreas
espiam dos balcões verdes
nas paredes florescidas:
dançam pétalas
dança a vida
nos jardins contentes
não termina a partitura
que se repete
sempre.


Boneca

A boneca de feltro
parece assustada com o próximo milênio.
Quem a aninhará nos braços
com seus olhos de medo e retrós?

O signo da boneca é frágil
mais frágil que o de pássaro.
Confia. Assim passiva
o vento brincará contigo
franzirá teu avental
dirá coisas que entendes
desde a aurora das coisas:
foste um caroço de manga
uma forma de nuvem
ou um galho com braços
de ameixeira no quintal.

Não temas. Solta o
corpo de feltro. Assim.
Para ser embalada nos braços
da menina que houver.

 


Chamar Pássaros
Chamar pássaros com o alpiste
de amá-los. Eles pousam nos parapeitos. Nem
sombra de medo nessa aproximação.
Quase me sinto gêmea do que são parados
à beira da janela ou saltando no telhado
recém-chegados.
A cordialidade dos pássaros é
sutil:
afloram o coração de quem os ama.

(Este poema inspirou "Cumplicidade" de Soares Feitosa.)

Pássaro e Mulher


Quem me prende
mais do que a terra?
Impossível o vôo
agora.
Quente fremente
a intenção de alguém.
Desfez-se a palidez
perdi meu vôo
nas grades de seu peito.
Aprísiona-me - grilhão -
o seio suave e
no calor do instante
a união.

 

Alguém...


Alguém desfecha a flecha do vôo:
reflexo no vidro onde a chuva
penteia os cabelos.
Cantiva de muitas lágrimas
dos suspiros do vento
nesta casa pousada na montanha
aguardo criança flor anjo ou passaro.
Pensamentos alígeros - andorinhas
nos aguaceiros de verão
traçam oblíquas, desaparecem
no céu que escurece.
Abraçada à minha alma
não sinto o tempo latejar por perto.
O incerto longe é a minha vocação.
O longe do longe onde talvez
estás sempre em despedida
do invólucro que não te retém. E eu
sempre atrás do aceno teu
do aroma que te esquece e se esvai.
Se um lenço de fino linho
se desprendesse de teus dedos (sonho meu)
o caçaria como a um pássaro
que longe vivia
e me pertencia.


Murmúrios

Pousa num ramo um sopro de agonia
dos que morrem (sem saber)
em nosso coração.
Suspira a noite no vento vadio.
Amados mortos: tentais dizer
o quanto amais ainda?


Habitas meu coração:

Habitas meu coração: barbas de rei assírio
olhar de extensões alheias
a tempo e medida.
Tua voz tem asas de falcão e pousa
nas torres mais altas do meu ser
onde jamais me aventurei. É minha a tua solidão.
Sirvo-te em silêncio e às vezes
como a uma criança me apertas em teu peito:
acaricio então tua face estranho rei.
Outras vezes ouço passos ecoando
no enlace das colunas em seteiras escadas. Se grito
teu nome - és mil ressonâncias e seu eco em mim.


Elegia dos Golfinhos

Viu (porque só ver podia)
sem interferir: eles feriam
o cardume denso dos golfinhos, armadura azulada
protegendo atuns. Eram estes o alvo cobiçado
para as latarias de consumo. Tudo servia
aos velhacos: matemática, um navio branco
— noivo da Morte —, redes atiradas
em círculo perfeito e nefasto perto do cardume.
Tiros ecoavam no ar, encapelando
a ordem bela dos golfinhos no caos turbilhonante.
Aprisionados, eles se contorciam em desespero.

Lamentem-se os coros sagrados de Netuno
acorram Nereidas, Anfitrite em lágrimas com
seus cavalos marinhos em torno das malévolas mandalas
de redes sobre o mar. Ó Nova Idade, não vês tantas
formas desfeitas, não vês que o rei Midas
tudo transforma agora no ouro do negócio?
Os golfinhos tranqüilos começam a morder.
Ah, cascata iridiscente no limiar da morte
em dança fúnebre! É o anti-Cristo no coração dos homens,
o usurpador, o peixe voltado para a esquerda, involutivo.

Mercância vil contaminando cabeças
e corações! Vociferem as pitonisas
de cabelos soltos, pálpebras emaciadas!
São os golfinhos os novos educadores
com sua graça natural, com sua dança
que a morte não detém. Eles propõem música.


 

 
Dora Ferreira da Silva


Nota biográfica:
 
Poeta e tradutora de Rilke,Jung e de Hölderlin, entre outros. Faleceu na tarde do dia 06/04/2006, aos 87 anos, em São Paulo-SP, onde morava.
 
" Dora tem uma longa trajetória de mais de 50 anos dedicados à poesia. Autora de livros como Andanças, Talhamar, Retratos de Origem, Poemas da Estrangeira e Hídrias. Foi três vezes ganhadora do Prêmio Jabuti. Recebeu também o prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, em 2000, por sua obra Poesia Reunida, editado pela Topbooks.

Como tradutora, destacam-se seus trabalhos com autores como Rilke, Saint-John Perse, San Juan de la Cruz, Hörderlin e Jung. Também atuou como editora, fundando a revista Diálogos, juntamente com seu marido, o filósofo Vicente Ferreira da Silva. Depois, criou a revista Cavalo Azul, para difusão da poesia. Atualmente, funcionava em sua casa, um Centro de Estudos de Poesia com o mesmo nome.
Dora conquistou o Prêmio Jabuti 2005,
um dos mais prestigiados da literatura brasileira,
com o livro Hídrias."
Obras de Dora Ferreira da Silva:
  • Andanças, edição da autora, 1970, Prêmio Jabuti.
  • Uma via de ver as coisas, Editora Duas Cidades. 1973.
  • Menina e seu mundo, Massao Ohno, 1976.
  • Jardins( Esconderijos), edição da autora, 1979
  • Talhamar, Massao Ohno, 1982.
  • Retratos da origem, Roswhita Kempf, 1988.
  • Poemas da estrangeira, Massao Ohno, 1996, Prêmio Jabuti.
  • Poemas em fuga, Massao Ohno,1997.
  • Poesia Reunida, Topbooks, 1999, Prêmio Machado de Assis da ABL.
  • Hídrias, Odysseus Editora, 2005, Prêmio Jabuti.
Traduções:
  • Elegias de Duíno, de Rainer Maria Rilke, Editora Globo, 1972
    e relançada recentemente.
  • Memórias, sonhos e reflexões,CarlGustavJung, Nova Fronteira, 1975
  • A poesia mística de San Juan de la Cruz, Cultrix, 1982, esgotada.
  • Angelus Silesius, em colaboração com Hubert Lepargneur, T. A.Queiroz, 1988
  • Vida de Maria, de Rainer Maria Rilke, Editora Vozes, 1994
  • Tauler e Jung, em colaboração com Hubert Lepargneur, Paulus, 1987

    O Segredo da Flor de Ouro - CarlGustavJung
      

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004
    

        Dora Ferreira da Silva
        In Poesia Reunida 
        Topbooks, Rio de Janeiro, 1999

Fonte:
poesia.net  76
poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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