segunda-feira, 30 de maio de 2011

LÉVINAS: FILOSOFIA ABERTA AO FEMININO -Magali Mendes de Menezes



O pensamento de Emmanuel Lévinas: uma filosofia aberta ao feminino


 
Magali Mendes de Menezes

Centro Universitário Feevale, Novo Hamburgo, RS


RESUMO

O presente texto tem como objetivo percorrer três importantes obras do filósofo Emmanuel Lévinas – Da existência ao existente, O tempo e o outro, Totalidade e infinito – no intuito de compreender de que forma o conceito de feminino vai surgindo em suas reflexões e que significação assume diante do sujeito (compreendido por Lévinas como masculino), da subjetividade e do pensamento sobre a ética, considerada aqui como filosofia primeira.

Não é difícil percebermos que o feminino historicamente assumiu diferentes sentidos (na maioria das vezes pejorativos) como fragilidade, sensibilidade, noite, passividade, silêncio... e tantos outros. O que se mostrava como protótipo do humano não deveria então conter esses atributos, que foram vistos como inferiores e, por isso, desprezíveis. Mas Lévinas1 irá se utilizar justamente dessas características para mostrar que o que se apresentou (através da história) como inferior é constitutivo do sentido último do humano. O sujeito que desfalece não é mais o sujeito heróico da história, vencedor de batalhas, mas um sujeito que se fragiliza e se sensibiliza com e pelo Outro; em outros termos, que se torna feminino. 

O Eu viril (como tantas vezes é descrito por Lévinas) perde seu poder de tudo poder, torna-se vulnerável. Não para agora novamente se fixar em uma nova imagem, numa tentativa de continuar aprisionado ao jogo circular das identidades, o feminino, no entanto, faz surgir uma multiplicidade no sujeito que o torna nômade, pois o feminino é equívoco, ambigüidade, aporia. Não há mais como continuar centrado em si mesmo, a multiplicidade não pode mais ser reduzida ao "um", e é esse o sentido do "Outro-no-Mesmo". Lévinas sobre isso comenta:

    Na época [...] eu pensava que a feminidade fosse essa modalidade de alteridade – esse 'outro gênero' – e que a sexualidade e o erotismo fossem essa não-indiferença ao outro, irredutível à alteridade formal dos termos em um conjunto. Eu penso hoje que é preciso ir mais longe e que a exposição, a nudez e a 'demanda imperativa' do outro constituem esta modalidade que o feminino supõe desde já: a proximidade do próximo é a alteridade não formal.2

Portanto, para Lévinas o feminino supõe essa proximidade. "Supor" vem do latim suppõno, is, posûi, s-tum, ponçre, que significa "pôr debaixo, aproximar a, pôr em lugar de". No momento em que o autor diz que o feminino supõe essa proximidade, significa dizer que o feminino suporta o peso dessa significação ética.

O Dizer maternal é o dizer do que não tem fala e, de certa forma, representa o silêncio de todos aqueles que não tiveram possibilidade de falar. Lévinas é perseguido pela história de violência e de morte do Outro. Quando se passa pela vivência em um campo de concentração,3 quando se tem a família brutalmente assassinada, se está diante de uma experiência que é extremamente difícil de ser dita. E são raros os momentos em que o filósofo fala diretamente dessa experiência, embora ela percorra toda a sua obra. É em memória desses milhões de vozes sufocadas pela violência que Lévinas dedica sua grande obra Autrement qu'être au dela de l'essence. Sua obra é a expressão de um sujeito ferido, que fala não para rememorar ou representar o passado. Como é possível então falar desses que não tiveram história nem ao menos rosto? Como é possível testemunhar a morte e apesar disso ainda continuar falando?

Qualquer fala deve ser, a partir dessa história, a prevalência da fala do Outro, mesmo que esse Outro não esteja mais aí; assim falamos a partir dos ecos, vestígios daqueles que passaram. É possível fazer poemas após Auschwitz. "A dor perene tem tanto direito à expressão como o torturado ao grito; por isso pode ter sido errado afirmar que não se pode escrever mais nenhum poema após Auschwitz."4 Falaremos aqui de uma escritura feminina, porque em seu silêncio deixa o Outro falar – "linguagem do inaudível, linguagem do inaudito, linguagem do não-dito. Escritura".5

Este texto pretende, então, seguir os vestígios desse feminino em três textos de Lévinas: Da existência ao existente, O tempo e o outro e Totalidade e infinito.

Lévinas nos deixou uma dura tarefa: pensar o que ele não pensou e a partir de um pensamento que constantemente exige reinterpretações, nos dando a sensação de que estamos "tateando no escuro um enorme elefante". O feminino é certamente um desses temas que se colocam, muitas vezes, como obscuro em sua obra. Como esse tema ainda é pouco abordado pelos estudiosos do pensamento de Lévinas,6 trago à tona as duas grandes pensadoras que trabalharam com profundidade essas questões, Catherine Chalier e Paulette Kayser. Suas reflexões são aqui valiosas para nortear nosso mergulho em um pensamento que ainda é tão inaudível a nossos ouvidos 'gregos'. 

Afinal, como é possível 'escutar' uma maternidade que aparece como subversiva em sua natureza mesma, apresentando uma identidade já 'doente', pois não consegue mais repouso? A subjetividade maternal, substituição (Outro-no-Mesmo), passividade ao extremo, é o 'grão de loucura' que nos humaniza e que chega aos nossos ouvidos mesmo que não queiramos escutá-lo.

1. Os vestígios do feminino no texto levinasiano


O feminino aparece em muitos textos de Lévinas, tanto filosóficos como em suas leituras talmúdicas, como um dos pontos cardeais de seu pensamento (como diz o próprio filósofo). Compreender sua inserção e sua importância torna-se, então, vital para a análise da obra do autor como um todo. Buscaremos traçar aqui os momentos precisos de surgimento do feminino nas três importantes obras do filósofo referidas anteriormente. 

Pretendemos, dessa maneira, acompanhar suas transformações no decorrer da trajetória de um pensamento tão rico e polêmico, tendo consciência de que despregar um conceito do interior de uma obra é sempre arriscado, pois podemos perder o conjunto das reflexões que dão suporte a seu surgimento. Mesmo assim, assumimos esse risco, tendo o máximo cuidado de abrir parênteses, quando esses forem necessários, para 'clarear' um conceito que busca justamente fugir à luz.

1.1 De l'existence à l'existant

A obra De l'existence à l'existant (1947) é um dos primeiros escritos em que o feminino surge como um conceito que aos poucos vai assumindo uma importância ímpar em sua obra. Esse texto terá uma parte redigida antes da guerra e outra durante a guerra, trazendo de certa forma a impressão de alguém que passou pela experiência do cativeiro e que teve a morte como cenário. 

A dedicatória enigmática é inscrita com três letras – P.A.E. –, o que Lévinas explica como sendo as iniciais do nome de sua esposa em russo. Porém, em uma análise mais atenta, como observa Lescourret,7 essas iniciais significam também uma lembrança de sua filha nascida após sair do campo de concentração e falecida depois de alguns meses de vida, Pour Andrée Éliane. Esse livro, de alguma forma, fala dessa dor, do peso do anonimato da existência, do esforço humano em tentar existir. Os argumentos foram inicialmente introduzidos em um texto anterior intitulado "Il y a", publicado no primeiro ano da revista Deucalion, que teve como fundador Jean Wahl, figura que assumirá uma importância especial na vida de Lévinas.

O texto inicia-se interrogando sobre o surgimento do existente a partir da existência, ou seja, como o ser humano se ergue, como da existência pura nasce algo. Colocam-se aí o drama e, ao mesmo tempo, o paradoxo dos entes que se esforçam para se despregarem do ser e assim serem. O afastamento é necessário para o surgimento da particularidade que, no princípio, se confunde com a generalidade do ser. Lévinas traça, a cada momento, um diálogo com Heidegger para mostrar o quanto se distancia do mesmo. De que forma podemos compreender esse ser separado do ente?

A compreensão de um princípio "entificador" nos deixa esta pergunta que movimenta todo o pensar filosófico: a pergunta pelo ser. A questão se agudiza porque justamente o ser não se especifica, não se adjetiva, como o ente, mas também não é o nada. Buscando compreender essa idéia de ser em geral, o texto visa a acompanhar o nascimento do sujeito, que Lévinas chama "hipóstase". 

O sujeito que nasce de uma existência ex nihilo não é puxado para vida como se isso fosse um movimento natural e óbvio. Da mesma forma que o sujeito nascente busca a vida, ele também resiste a ela. O ser, essa existência sem nome, comporta o peso da própria neutralidade. Desse modo, não é a morte que interrompe o movimento desse sujeito, mas o Ser, ou o "Il y a". 

Essa é uma noção central nesse trabalho, mostrando a luta pela vida do sujeito, num enorme esforço de soltar o primeiro grito e anunciar ao mundo sua vinda; este se percebe também envolvido por uma força contrária (que talvez exija uma força maior ainda que nascer), que é hesitação em continuar nascendo. Anterior mesmo à reflexão e, portanto, à consciência desses fenômenos, o sujeito vive o acontecimento da fadiga e da preguiça; para ele, o dia não aparece como motivação e a quimera de uma noite eterna é o seu único refúgio nesse estado de sonolência do qual não quer sair. 

A imagem do sujeito que não consegue sair de sua cama, despertar, descreve o sentido da preguiça. Mas esse cansaço, lassidão diante da vida, visa à própria vida. 

Não é uma busca da morte, um deixar de existir, mas é deixar se levar pelo movimento mesmo do ser, o que pode parecer um risco diante do "neutro", termo que aparece na obra de Blanchot e sobre o qual Lévinas sugere uma aproximação. A obrigação de fazer algo para existir nos conduz ao cansaço de não fazer. O sujeito retarda sua existência como que criando um intervalo de pausa em face do presente que lhe exige "estar presente". Quem talvez não tenha já vivido esse estado de relaxamento, de sonolência, e uma vontade de continuar na cama, olhando o mundo apenas por uma fresta do cobertor?

Vontade de não ter vontade, não de não existir, pois do contrário não poderíamos nem sequer viver esse estado, mas vontade de estar entre parênteses, de não ser sujeito da própria existência. Entregar-se à vida é caminhar sem ter a certeza para onde se vai exatamente chegar – a preguiça representa essa possibilidade de adiar essa partida, que é sempre um "partir para partir".8 Essa certa impossibilidade de começar é, desde já, começo; estranho em si mesmo, pois para poder não começar se faz necessário o começo. No instante do começo se sabe que não se pode mais retornar; a vida começou, agora só é possível 'diminuir' seu ritmo, pois o sujeito é empurrado para o mundo. 

Não é possível mais retornar 'ao útero' do qual se partiu; empurrar o bebê de volta é matá-lo. A preguiça é acompanhada por um cansaço não do presente, mas do futuro, do que está por vir, que é desconhecido e por isso assustador. O acontecimento desse instante de cansaço e preguiça mostra um sujeito que está cansado em ser. "A atividade fundamental do repouso, o fundamento, o condicionamento aparece então como a relação mesma com o ser, como o surgimento na existência de um existente, como hispóstase."9 

Mas o il y a (existência sem existente) coloca-se justamente como a ausência do sujeito, "alguma coisa se passa", e a indeterminação do pronome, o anonimato da existência, representa a noite. Na noite não há forma, pois é a luz do dia que possibilita a claridade das formas, a distinção, a diferença (na noite "todos os gatos são pardos"). Lévinas recorda as lembranças de criança, do medo do quarto escuro, de um silêncio da noite que toma conta e aterroriza. "O que se chama eu é ele mesmo submergido pela noite, tomado, despersonalizado, sufocado por ela."10 

Lévinas associa o il y a ao horror mesmo da noite que assombra e que, de alguma forma, provoca o existente a sair de si. É através da consciência que o sujeito vem e se desprega do ser anônimo, passa a ter um nome, se diferencia: é preciso viver (ou morrer, pois a morte seria aqui uma saída do ser, um movimento em direção a algo). 

A consciência, povoada pela claridade, rompe e suspende a noite na tentativa de provocar um intervalo nessa ausência de tempo, pois a noite é eternidade. Para isso, é preciso que essa consciência habite um corpo, ocupe um espaço e seja, ao mesmo tempo, instauradora do presente. Lévinas, desde o início de seus escritos, enfatiza a questão da materialidade e da corporeidade, mostrando um sujeito que, antes de ser consciência de si, pensamento, é corpo. O sujeito é sempre encarnado e por isso separado do mundo, repouso em si mesmo. Agora é possível dormir! Na noite estávamos em um estado de vigia, sem descanso, numa insuportável insônia. 

O movimento de dormir e despertar mostra o fluxo do tempo, da noite sendo interpelada pelo dia, da noite que não mais assusta, pois há a possibilidade de dormir, repousar. "É a partir do repouso, da posição, da relação única com o lugar, que surge a consciência."11 É a consciência que permite ao Eu conservar-se, permanecer o mesmo, mesmo diante de seus acidentes. O saber proporcionado pela consciência é a garantia da mesmidade do Eu. O sujeito agora tem um apoio, um lugar para nascer, e o paradoxo desse processo se dá pelo fato de que ainda a consciência não funda esse lugar, mas nasce junto, com o próprio lugar. 

Estar em um lugar e presente a si mesmo é fugir do anonimato e passar a existir. No presente se é um sujeito; no instante do presente em que cada momento se é, se nasce incessantemente. O presente não é um intervalo entre o passado e o futuro, como se pudéssemos, desse modo, retornar a uma anterioridade – "o presente é começo puro". No presente se percebe o esforço do sujeito em nascer, em ser. Assim, o presente se faz saída e mergulho no ser. Pelo presente o sujeito, agora "eu", consegue repousar em si, se fazer idêntico hipostasiando-se.

    Por hipóstase o ser anônimo perde sua caracteristica de il y a. O ente – o que é – é sujeito do verbo ser, e por isso exerce um domínio sobre a fatalidade do ser tornado seu atributo. Alguém existe e assume o ser, doravante seu ser.12

O sujeito, ao hipostasiar-se, hipostasia o ser, ou seja, faz do ser substantivo. Nesse momento se apresenta toda a ambigüidade do il y a, pois o que antes era anonimato – nem exterioridade nem interioridade – agora participa da hipóstase, isto é, todo movimento do Eu de retorno a si mesmo corre o risco de se deparar com o próprio il y a. Isso significa que a identidade desse sujeito transforma-se numa solidão tão absoluta ("estou para sempre comigo mesmo") como se a força destrutiva do il y a fosse encarnada pela virilidade de um sujeito que se percebe como centro de todas as coisas e origem de todo poder.

O sujeito assume a força do il y a; agora é ele que faz do Outro anônimo. Ele passa a viver entre o medo do anonimato e o poder de fazer surgir o anônimo. É dentro desse contexto que o feminino surge. O movimento da hipóstase é, portanto, insuficiente, sendo apenas uma primeira etapa, "pois o sujeito que existe é encoberto por todos esses existentes que ele domina";13 ele ainda corre o risco de não existir, de ser sufocado pelo mundo que o cerca.

O feminino é o único capaz de romper essa solidão, do sempre presente, da luminosidade da consciência, para apresentar ao Eu um futuro, uma história. É interessante observarmos que Lévinas introduz a questão do feminino colocando-o como o outro por excelência.14 Isso significa que, enquanto o Eu se assume como viril, egoidade por excelência, o feminino é a Alteridade mesma. 

Assim, o feminino abre uma dimensão nova no sujeito, mostrando um mundo que não é feito de solidão, nem de terror (anônimo). Para que o sujeito possa sempre renascer no instante mesmo do presente, e desse modo continuar a existir, é necessário que a continuidade dos instantes se coloque como novidade, como surpresa. A exigência do novo apresenta um Eu que não está pronto, definido, mas caminha a partir dessa não-definição. Ora, o novo, o recomeçar como outro, não poderá vir do próprio sujeito; necessita vir do Outro. "A alteridade absoluta do outro instante [...] não pode se encontrar no sujeito que é, definitivamente, ele mesmo."15 

Se o Outro abre o tempo, o feminino como alteridade por excelência é abertura mesma desse tempo. Para Lévinas, o encontro com o feminino se dá na relação erótica, que não é fusão de dois elementos, mas proximidade e, ao mesmo tempo, distância. No amor, a distância aproxima e a proximidade distancia. O Eu, na relação erótica, mostra então sua face – é pai. O pai é o intermediário para que o sujeito aprenda a viver a fraternidade. O pai não é um gênero de uma espécie, mas ele representa a diferença mesma que atravessa o sujeito, pois, vivendo a heterogeneidade da figura do pai, se é sem ser o mesmo.

    A intersubjetividade assimétrica é o lugar de uma transcendência em que o sujeito, conservando completamente sua estrutura de sujeito, tem a possibilidade de não retornar fatalmente a ele mesmo, de ser fecundo e, digamos, a palavra antecipando-a, de ter um filho.16

O feminino, retirando o Eu de sua solidão, é também necessariamente fecundo. Tem como tarefa abrir o tempo, trazer o filho. O feminino não é apenas uma figura de linguagem, mas aparece como a mulher mesma – alteridade primeira. Lévinas não fala nesse momento da mãe, como se esta fosse apenas uma passagem que toca esse sujeito em sua virilidade, apresentando uma fragilidade em si, um hiato de não retorno. É assim que ele encerra o último capítulo dessa obra. O que destacamos de importante nesse momento é a relação do feminino com o próprio sentido da alteridade, provocando uma profunda reviravolta no sujeito e que será aprofundada em sua obra posterior intitulada Le temps et l'autre.

1.2 Le temps et l'autre

Le temps et l'autre (1948) representa um conjunto de conferências proferidas entre 1947 e 1948 no primeiro ano de funcionamento do Collège Philosophique, fundado por Jean Wahl, no Quartin Latin. A primeira divulgação desses textos far-se-á através da publicação na coleção dos Cahiers du Collège Philosophique, que recebeu o título de "A Escolha, o Mundo e a Existência". 

Lévinas, ao prefaciar, trinta anos mais tarde, a reedição dessa obra,17 enfatiza sua sensação de estranhamento em relação a um texto que talvez, nesse momento, não fosse mais pronunciado da mesma forma. Tendo como contexto o pós-guerra, Lévinas reproduz as teses centrais da obra De l'existence à l'existant, aprofundando alguns pontos, mas acrescentando muito pouco ao que já fora dito anteriormente. 

Enquanto a obra anterior se colocava como uma tentativa de sair do il y a, Le temps et l'autre busca tirar o sujeito de sua solidão, sair do ser, pois a solidão é ainda ontológica. Esse tema será profundamente atual em um momento em que as teses existencialistas definiam a solidão como angústia e desesperança.

Tendo como fio condutor a questão do tempo, Lévinas destaca seu distanciamento de Heidegger, colocando o tempo fora do horizonte ontológico, ou seja, além do ser. O tempo é sempre o encontro com o Outro, com o infinito que se faz mistério. Esse conceito será profundamente explorado nessa obra e surgirá não apenas como um limite no movimento identificante do sujeito, mas também como a possibilidade de saída do ser e da solidão. No prefácio mesmo, Lévinas antecipa o destaque que dará ao feminino, abertura desse horizonte, inaugurando o tempo e a diferença – alteridade absoluta. 

Nesse momento, o filósofo não apenas fala da alteridade, mas também a destaca como sendo a própria diferença. Num mundo onde tudo parecia abarcado de alguma maneira pela identidade do sujeito, o feminino surge como a impossibilidade desse não-abarcamento, por ser diferença. Na tentativa de percorrer o movimento do sujeito que parte da solidão, passando pela morte até o encontro com o feminino, na relação erótica, Lévinas mostra um sujeito que, gradativamente, vai se fragilizando, perdendo sua virilidade. Percorremos sinteticamente aqui essa trajetória.

Lévinas resgata novamente a inquietação em pensar o surgimento do existente dentro de uma existência compreendida como il y a. Admitindo a impossibilidade de retornar a esse instante mesmo do il y a, o texto visa a pensar o sentido da hipóstase. No esforço de se despregar da existência anônima, o sujeito se encontra completamente só.  

Sua solidão é a garantia de sua existência e, por isso, de sua unicidade. Não representa a falta de comunicação ou um isolamento de tudo, mas a solidão é a ratificação desse esforço em existir, em se dizer o mesmo, enraizado-se em si mesmo. 

Seu aparecimento é seu domínio sobre a existência, fuga do anonimato, que só se completa quando é capaz de sair e retornar a si (identidade). A hipóstase é presente, mas isso não significa que o tempo penetre o existente. Se o presente não é tempo, como então chamá-lo presente? Isso se dá porque Lévinas não compreende o tempo como uma linearidade da duração, mas o presente é aqui o acontecimento do instante (talvez nem pudéssemos chamá-lo presente).

    Por um lado, é um acontecimento, não ainda alguma coisa, não existe, mas é o acontecimento do existir pelo qual alguma coisa vem a partir de si. Por outro lado, é ainda um puro acontecimento que deve se exprimir por um verbo, e contudo há como uma mudança nesse existir, desde já alguma coisa, desde já existente.18

Alguma coisa é (ente), dilacera o neutro, se faz presente, mas mesmo assim corre sempre o risco de deixar de ser. O presente é essa dilaceração sem início, pois do contrário seria precedida por algo, teria história. O sujeito vem de si, não sendo herdeiro do passado; o presente é soberano. É interessante o quanto Lévinas destaca nesse texto que a fenomenologia, como método, é incapaz de perseguir esse momento mesmo da autocriação.19

A dramaticidade da solidão não vem pelo fato mesmo de estarmos sós, mas porque a solidão exige uma responsabilidade do sujeito com sua existência, com sua materialidade. Se ele não fizer esse esforço para existir, ele morre. A sua existência é assim poderosa; responsável por si, o sujeito é herói de uma história que ele mesmo traça. 

Quando o sujeito depara-se com o mundo, seus elementos, vive uma situação (aparentemente) nova. Ao retornar a si, nesse ato constante de fazer-se, o sujeito vive um intervalo entre o "mim" (moi) e o "si" (soi). O mundo é alimento, necessário à sobrevivência; embora se ocupe com sua própria sobrevivência, o mundo é um outro que me chama atenção. Não apenas instrumento de sobrevivência, é também gozo. Comemos o pão não unicamente para continuarmos existindo; há no ato de comer um prazer. 

"Não é talvez justo dizer
que vivemos para comer,
mas não é mais justo dizer
que nós comemos para viver."20 

Mesmo assim, o Eu continua ligado a si e por isso essa novidade é aparente e ilusória. O conhecimento também se coloca como uma perda de atenção, em que o sujeito visualiza os objetos e se afasta de si. O mundo adquire vida pela luz do conhecimento e é, desse modo, que penetra o universo desse sujeito, não se fazendo exterioridade absoluta. Vive-se, pelo conhecimento e pelo gozo, uma ilusão de sairmos da solidão, mas as coisas não se colocam como "verdadeiramente outras".

Não há alteridade nas coisas nem estranheidade (diferença) neste mundo; tudo parece familiar. É nesse momento que Lévinas introduz um primeiro movimento de ruptura: a morte. "O desconhecido da morte significa que a relação mesma com a morte não pode se fazer na luz, que o sujeito está em relação com o que não vem dele."21
 
A morte é estranha, pois é mistério. A angústia diante da morte não surge por nos sentirmos ameaçados pelo fim da vida, pelo corte da existência, mas pelo fato mesmo de a morte nos colocar em face do desconhecido, que impede o "poder de tudo poder". 

O sujeito vê-se impedido de viver sua virilidade; na passividade extrema de um corpo que espera a morte, não existem mais heróis! Mesmo que se busque desesperadamente (como o último ato de heroísmo) resistir à morte, ela nos chega e, de sua alteridade, não podemos nada mais dizer. A morte é alteridade porque se faz completamente outro; é um acontecimento que impede a permanência, a manutenção do sujeito. Mas Lévinas busca ainda um acontecimento que, ao mesmo tempo que é capaz de fragilizar a onipotência desse Eu, arrancando-o de sua solidão, possibilita sua existência. Esse acontecimento que mostraria a vitória do Eu diante da morte se dá no Eros, através do encontro com o outro, com o feminino.

    Diante de um acontecimento puro, diante de um futuro puro, que é a morte, em que o eu não pode nada poder, ou seja, não pode mais ser eu, buscaríamos uma situação em que, contudo, é possível continuar sendo eu, e chamamos essa situação de vitória sobre a morte.22

E novamente Lévinas encerra o livro falando sobre o sentido desse feminino na construção da "subjetividade" (embora praticamente o autor não utilize ainda esse termo). O feminino, da mesma forma que a morte, é mistério, foge à luz. Assim, o feminino mantém sua alteridade, permanecendo absolutamente outro. Não como oposição ou complemento, que faz da relação erótica uma fusão de elementos, uma simetria em que a reciprocidade é necessária. O feminino surge no texto apontando uma diferença, que é também sexual, mostrando uma realidade fundamentalmente múltipla em si mesma.

"A diferença dos sexos não é mais uma dualidade 
de dois termos complementares, pois dois termos
complementares supõem um todo preexistente [...] 
o patético da volúpia está no fato de ser dois."23

O masculino, sujeito viril, herói da batalha de manter-se como existente, trazendo o mundo para si, essencialmente mesmo, depara-se agora com o feminino, essencialmente outro, por isso mistério. O feminino é segredo, pois não se deixa revelar. Lévinas não ignora aqui a luta das mulheres em se fazerem visíveis para a história e nem desconsidera toda uma literatura que faz do feminino um atributo etéreo, sem corpo ou forma. Mas o que importa aqui nessa noção é a maneira de ser do feminino, ou seja, ser mistério, capaz de desestruturar a rotina da identidade, mostrando algo que é incognocível. 

Lévinas, em uma obra posterior (Éthique et infini), destaca que a alteridade pertence à natureza feminina, afirmando uma estrutura ontológica ao feminino. Em nenhum momento o autor substitui feminino por mulher ou masculino por homem, mas todo texto nos leva a fazermos essa associação.24

A relação erótica é feita de carícias em que não se toca um objeto ou a si mesmo. Na carícia, o sujeito vai além de si, como se, ao tocar o Outro, tocasse o futuro, o que está por vir e que não tem conteúdo. A fecundidade abriria a estrangeiridade no pai, que é, através do filho, um outro. "A paternidade não é simplesmente uma renovação do pai no filho e sua confusão com ele, é também a exterioridade do pai em relação ao filho, um existir pluralista."25

Na dialética entre morte, sexualidade e paternidade, o Eu (masculino) vive a possibilidade da transcendência, em que a sociedade é formada pela multiplicidade, não apenas representativa de cada indivíduo, mas de uma diferença que atravessa o próprio sujeito. Se é possível dizer que o feminino nos ensina algo (pois em Totalidade e infinito Lévinas destaca que o feminino não é ensinamento), diríamos que nos ensina o sentido mesmo da diferença.

1.3 Totalité et infini


Totalité et infini (1961) é considerada por muitos pensadores como uma das mais belas obras do século XX. Publicada pela editora Martinus Nijhof, e na Holanda na coleção Phænomenologica, Lévinas desenvolve com profundidade temas que já haviam sido abordados anteriormente. Lescourret destaca que suas teses principais estavam presentes no texto De l'evasion (1935) e culminam na obra Autrement qu'être au-delà de l'essence (1974).26 Este trabalho é importante também porque marca a entrada definitiva de Lévinas no meio acadêmico, sendo então nomeado professor em Poitiers. Após seu surgimento, Jean Lacroix comenta seu sentimento de admiração e encantamento com a obra, em um artigo do Le Monde:

    A impressão de estranheza e de expatriação, literalmente, de admiração que se experimenta lendo essa obra, vem sem dúvida de sua característica moderna e tradicional. Toda uma corrente religiosa por toda parte presente como inspiração, mas nunca desvelada nela mesma; as reflexões cartesianas e kantianas estão aí percebidas em seu centro e traduzidas em termos de existência. O esplendor da existência que arriscaria, às vezes, cansar como um ruído de palavras é sempre sustentada, animada pela dupla paixão do homem e do transcendente. Esta filosofia tem um estilo, se o estilo é a perfeita adequação do fundamento à forma.27

Como se costuma dizer, um grande filósofo não surge pela variedade de suas teses, mas pelo fato de perseguir por uma vida inteira uma única questão. Aprofundando, retomando e avançando em suas questões, Totalité et infini coloca em debate a história do pensamento filosófico no Ocidente, dialogando com Husserl, Heidegger, Hegel, Sartre, entre outros, para fazer uma dura crítica à idéia de totalidade (presente tanto no ser como no sistema) e identidade. Para nosso pensador, todas essas idéias não nos conduziram a outro lugar senão à guerra. 

É urgente buscarmos um pensamento que seja capaz de nascer e de nos conduzir a um "outro lugar", que chamaríamos Paz. Não apenas contrário à idéia de identidade, o Outro aparece como a excedência, o Infinito, exterioridade absoluta que apresenta limites à totalidade (uma totalidade com margens deixa então de ser totalidade). 

O Outro não é, assim, 
o inverso do sujeito identitário, 
mas uma alteridade que surge 
em sua própria positividade, 
inaugurando a diferença e a separação.

A obra é dividida em quatro grandes seções em que a questão do feminino pode ser destacada em dois momentos precisos: na casa e na relação erótica. Aqui Lévinas oferece ao feminino uma abordagem diferente das que até então vinham sendo dadas. O feminino sendo apresentado como casa não está exclusivamente relacionado à mulher, mas a uma dimensão humana que é dita através dessa metáfora. O feminino enquanto casa aparece na seção II intitulada "Interioridade e economia".

Ainda encontramos presente nesse texto a descrição de um sujeito que vem se construindo e que é ameaçado pela duplicidade do il y a (a neutralidade do ser e o sufocamento dos elementos do mundo), o que Lévinas, então, chamará "totalidade". A busca de um "intervalo" em que o sujeito possa surgir verdadeiramente sem ser sufocado mostra um Eu que é fragilidade diante da totalidade, mas também encarnação dessa totalidade. Correndo o risco de desaparecer, o Eu se infla de um poder para se sobrepor ao mundo ameaçador, tentando construir seu rosto na amálgama disforme do anonimato.

Lévinas transfere, inicialmente, a intencionalidade husserliana da consciência para a vida, enquanto experiência sensível. Ao mesmo tempo, essa intencionalidade da vida assume um caráter totalmente diferente, pois não apenas mostra um Eu capaz de determinar o mundo (consciência representativa), mas é também capaz de ser determinado. Isso se dá porque os elementos do mundo não são coisas (como na representação), possuem uma "alteridade", são chamados de elemental.

"Toda a relação ou posse se situa 
no âmbito do não possível que envolve 
ou contém sem poder ser contido ou envolvido."28 

Nesse momento "inicial" de ser sujeito, Lévinas mostra um Eu que vive no princípio feliz, em que a vida é puro gozo, onde não existe consciência, apenas sensibilidade intencional, "viver de...". Os elementos estão a sua disposição, o Eu habita um mundo paradisíaco. No entanto, o mundo que proporciona a felicidade também é o mundo que pode fazer falta. O homem não somente sente prazer em comer, mas tem a necessidade de comer; a fome e o alimento são simultâneos. Seu corpo – forma de se posicionar no mundo, de estar, pisar um chão e, a partir daí, se colocar – está nu e indigente.

O sujeito deve então se separar do mundo, criar uma interioridade, passando a viver sua solidão ao lado do prazer, egoísmo de existir "para si". "A ruptura da totalidade que se realiza pelo gozo, ou pela solidão do gozo, é radical. Quando a presença crítica do Outro puser em questão o egoísmo, não destruirá a sua solidão."29 O mundo assim subsiste, tem vida própria e não está aí simplesmente em função desse sujeito. O prazer é a primeira forma de relação com o mundo, e é no prazer que o humano se constrói. 

O mundo se torna coisa quando fazemos dele matéria de exploração! Mas esse mundo, como elemental, tem o peso do il y a, habita também a noite. A separação absoluta do sujeito só se dará na construção da interioridade, quando conseguir sentir-se em casa (chez soi), protegido do mundo que pode ameaçá-lo. 

"A morada, a habitação, pertence à essência – ao egoísmo – do eu. Contra o il y a anônimo, horror, tremor e vertigem, abalo do eu que não coincide consigo, a felicidade da fruição afirma o eu em sua casa".30 É como se o sujeito fosse atravessado pela condição de estrangeiridade, necessitando assim habitar um lugar preciso, seguro para repousar. Não é qualquer lugar, qualquer casa; é preciso o convite para que o Eu se sinta acolhido. 

O sujeito (protagonista do texto) na casa perde sua face estrangeira, traço este que estará sempre presente, por sua vez, no rosto do Outro. A casa é "morada", termo que assume uma significação própria no texto, porque possui a dimensão do feminino. A morada não é um edifício frio, uma coisa entre outras coisas no mundo, mas possui o calor da intimidade, condição de recolhimento. É dessa forma que o Eu conquista sua separação definitiva do mundo, pois a morada, ao mesmo tempo que marca um limite, possui suas portas e janelas abertas. O sujeito contempla o mundo agora através das janelas de sua casa.

Entramos na casa porque ela é hospitaleira, convite para ficar e gozar verdadeiramente o mundo. A morada é já intimidade com alguém, habitante que habita esse lugar antes de mim, como se estivesse preparando esse lugar para ser morada. Mas quem é esse alguém que habita a minha morada antes de mim mesmo? Lévinas utiliza pela primeira vez o termo "mulher", rosto feminino, e não apenas "feminino" para falar desse habitante, que não invade a Morada de forma violenta, mas é doçura, familiaridade. O Rosto é especificado, adjetivado como feminino.

    E o Outro, cuja presença é discretamente uma ausência e a partir da qual se realiza o acolhimento hospitaleiro por excelência que descreve o campo da intimidade, é a Mulher. A mulher é a condição de recolhimento, da interioridade da Casa e da habitação.31

O feminino é descrito nas obras anteriores como alteridade por excelência, mas aqui a Mulher, com letra maiúscula, surge como a hospitalidade por excelência, o acolhedor em si. O feminino se apresentava anteriormente como alteridade; agora alteridade é feminina. Mas conserva todos os traços do que até então fora dito do feminino, ou seja, a Mulher é presença e ausência, linguagem sem ensinamento, por isso silenciosa, presença sempre discreta, segredo, mistério. A mulher não é também o vós do rosto (que supõe a altura); é o tu da familiaridade. É o único momento em que Lévinas admite uma relação com a filosofia de Buber, quando comenta que essa relação se assemelha à relação entre Eu e Tu deste autor. 

A forma que a Mulher tem de reservar-se possibilta a construção da interioridade do Sujeito (momento em que o humano se assume homem) – doce desfalecimento do ser, pois o surgimento da Mulher não ameaça; ao contrário, se retira para que o Outro (enquanto mesmo) possa nascer. O ser, na relação amorosa, não tem a mesma intensidade, perde a força, fragiliza-se através da presença/ausência da mulher.

Mas o surpreendente do texto virá mais adiante, quando Lévinas, depois de deixar bem claro que o feminino da Casa carrega a presença da Mulher, se refaz enfatizando que a dimensão da casa não necessita da presença do "sexo feminino" para se dar.

    O feminino foi descoberto nesta análise como um dos pontos cardeais do horizonte em que se coloca a vida interior – e a ausência empírica do ser humano de 'sexo feminino' numa morada nada altera a dimensão de feminidade que nela permanece aberta, como o próprio acolhimento da morada.32

A interioridade então se ergue a partir do feminino! Casa, Mulher, Feminino se misturam, assumindo as mesmas características e ao, mesmo tempo, se separam para assumirem essas mesmas características em diferentes lugares e momentos na obra levinasiana. Mas, se a Casa não necessita da Mulher, por que citá-la? Por que colocá-la, inicialmente, como condição de recolhimento, portanto da Morada? Essas contradições certamente não surgem como um descuido do filósofo tão preocupado com a revisão de seu discurso (isso se percebe no decorrer de toda sua obra). 

Essas interrogações serão aprofundadas através da crítica feita por Catherine Chalier a Lévinas, o que será abordado mais adiante. Queremos, neste momento, apenas destacar a forma como o feminino vai se apresentando ao longo dos textos para que possamos ter uma visão mais abrangente desse conceito (ou protoconceito).

A questão do feminino também aparece em outra seção da obra intitulada "Para além do Rosto". Nessa que é a última parte do livro, após Lévinas ter analisado com profundidade a significação do Rosto, a relação com Outro e as implicações dessa relação para o Eu, ele fala agora de "algo" que está para além do Rosto. O outro que neste momento se apresenta não é mais o Outro que até então vinha sendo descrito, mas é o Outro da relação erótica, possui um rosto específico, "rosto feminino". 

Do mesmo modo, o Eu também não será mais o mesmo, mas se mostrará como subjetividade amorosa ou subjetividade da fecundidade. Essa seção começa falando do amor, conceito que é pouco utilizado pelo autor, segundo ele, pelo fato mesmo de estar profundamente desgastado no mundo atual. O sentido mesmo do amor foi perdido. O amor, do mesmo modo que a fecundidade, provoca uma perturbação no Eu que será distinta da perturbação causada pelo Outro. 

O Eu vive uma experiência em que é, mas ao mesmo tempo se transcende, e nessa ambigüidade se revela toda a equivocidade do erótico. O Outro passa a ser a "Amada", termo que se afirma no feminino, do mesmo modo que o Eu se mostra como masculino, apontando na forma de amar a diferença sexual. Rodolphe Calin comenta que

    Lévinas vê na diferença sexual o lugar de uma abertura à alteridade radical do outro suscetível de elevar essa diferença biológica ao nível de uma categoria ontológica, não considerando contudo a alteridade senão sob a figura do feminino, como se o eu que vai em direção ao outro sexo fosse necessariamente masculino. A atitude de Lévinas é bastante ambígua pois, por um lado, cede ao preconceito androcêntrico e, por outro, tem a aparência de um elogio ao feminino.33

A ambigüidade se percebe, também, no fato de Lévinas ter, a todo o momento, o cuidado de não ontologizar o rosto, mas quando fala do feminino concede características próprias e específicas a esse rosto. Assim, a Amada aparece em muitas passagens sempre sendo descrita como ternura, fragilidade, vulnerabilidade, como um "não-ser-ainda". Ou seja, quando o amor visa à Amada, visa a algo que se coloca em um plano diferenciado do Outro. 

A Amada também é a equivocidade por excelência. Ela não apresenta a significação em si mesma, como o Outro, que não pode ser descolado de sua própria palavra, mas o rosto feminino é "insignificância", não tem palavra. Sua forma de ser não exibe sua significação – "a simultaneidade ou equívoco dessa fragilidade e do peso de não-significância, mais pesado do que o peso do real informe, denominamos feminidade".34 

A carícia como a forma de os amantes se buscarem é feita de necessidade e desejo. Do mesmo modo que o amante visa à satisfação, quando se depara com o feminino percebe algo que vai além da necessidade e da consumação de uma necessidade. A Amada, rosto feminino, não é objeto, nem fonte de conhecimento, pois se apresenta fugindo à luz, retirando-se, se fazendo ausente.

A relação erótica se aproxima, desse modo, da obscuridade do Il y a, como se a noite percorresse a inexatidão do Feminino, que não pode ser traduzido pelo "dito", palavra sempre representativa. O Rosto feminino carregaria em si mesmo um Dizer. A carícia busca profanar esse Dizer, tocar o intocável, trazer à luz o que só pode se mostrar na noite.

    O rosto feminino reúne essa claridade e essa sombra. O feminino é o rosto em que a perturbação cerca e invade a claridade [...]. Na inversão do rosto pela feminilidade – nesta desfiguração que se refere ao rosto – a insignificância mantém-se na significância do rosto [...] é o acontecimento original da beleza feminina, do sentido eminente que a beleza assume no feminino [...].35

O Rosto feminino é então a inversão do próprio sentido do Rosto, "significação às avessas" – esse é seu equívoco. A beleza feminina está no fato de não haver exposição – anuncia e esconde o futuro (por isso difere da obra da arte, imobilidade do instante, produzindo imagens).

Mais adiante, Lévinas coloca que a Amada regressaria à condição de infância, vivendo o mundo sem o peso das responsabilidades, ainda na animalidade, abandonando assim seu estatuto de pessoa.

    A amada não se opõe a mim como uma vontade em luta com a minha ou como submissa a minha, mas ao contrário, como uma animalidade36 irresponsável que não diz verdadeiras palavras. A amada retorna à posição da criança sem responsabilidade – esta sedução, esta juventude, esta pura vida 'um pouco animal' –, deixou seu estatuto de pessoa.37

Não desconsiderando o fato de que, muitas vezes, essa forma de ser do feminino possibilitou certa dominação diante do mundo (como se o poder feminino caminhasse por outras vias), Lévinas destaca que é exatamente nessa maneira de se esconder que o feminino assume sua força. A Amada impede, doce e suavemente, a violência viril do Amado, na medida em que não possibilita o seu retorno a si, obra da identidade. A Amada enternece, efeminiza o Eu (amado, masculino) a partir do momento em que a carícia não é posse, e em que o amor se faz entrega. No amor nos perdemos sem, no entanto, vivermos uma fusão ou busca de uma complementaridade através do Outro, transcendendo o mundo da luz. Na relação erótica se busca o que está além: o filho. 

"O Eros liberta desse estorvo, suspende o retorno de mim a si."38 A relação erótica funda a paternidade (não a maternidade), que nosso autor cita como devendo ser o modelo de todas as relações humanas. O filho é sempre único para o pai e essa unicidade deve ser transportada a todos os níveis de relações humanas. O Amado, quando busca a Amada, dirige-se ao Outro, completamente Outro que é o filho e, dessa forma, ele (pai) realiza sua transcendência.

A fecundidade realiza a obra da paternidade, mas que só se tornou possível pela maternidade, pela relação com o feminino. O Feminino é, portanto, responsável pela transcendência do Eu. A paternidade não se dá somente no nível biológico, pois a ausência do pai biológico não anularia essa dimensão.39 

O Eu paternal transcende-se porque vive através do filho o fenômeno da transubstanciação, em que o Eu é seu filho, não como uma mera continuidade, em que se buscaria uma realização no filho de todas os desejos que de alguma forma não conseguimos conquistar. A originalidade dessa situação inaugura uma relação com alguém que não é meramente a minha obra, mas que me possibilita, ao mesmo tempo, vencer a morte e ser outro. "A paternidade é uma relação com um estranho que, sendo embora outrem [...] é eu."40 O filho abre a relação amorosa, fechada ao social, proporcionando, assim, uma sociedade fraterna.

Um ponto significativo a ser observado é o fato de Lévinas mostrar, nesse capítulo, o caráter múltiplo desse Eu. O Eu se vê perturbado por essa multiplicidade desde o momento em que é atravessado pelo feminino (efeminizando-se) até a relação com o filho (transubstanciação). O Eu, através do feminino e da fecundidade, vive a diferença em si mesmo, acontecimento que o impede de reunir todas coisas e elementos do mundo em uma identidade comum, em uma consciência totalizadora. 

O feminino sensibiliza o Eu para o encontro com o Outro fora da relação erótica – como se precisasse passar pelo aconchego da morada, pelo relacionamento com a Amada, que ama o Amado antes mesmo que este venha a amá-la, para viver uma relação em que não se espera absolutamente nenhuma gratidão, entrega absurda em que o Outro pode, inclusive, matá-lo.

Conclusão

Retomando os pontos investigados, percebemos que a questão do Outro nasce, no texto de Lévinas, através da descrição do sujeito, do Eu, identitário em seu movimento e que, de repente, se percebe rompido pelo aparecimento do Outro. O desfalecimento sofrido por esse sujeito dar-se-á, na obra de Lévinas, através de três momentos bem precisos: a morte, a equivocidade do feminino e a presença do Outro. Paulette Kayser41 comenta que o percurso que vai de Totalité et infini a Autrement qu'être é o movimento de um sujeito (masculino) a uma subjetividade maternal, da paternidade à maternidade, de um sujeito seguro em sua morada a uma expulsão, expatriação de si mesmo, do Dito ao Dizer. Em um primeiro momento, a Diferença enquanto alteridade absoluta aparece na exterioridade (visage), que é sempre infinita em seu aparecimento. Após, percebemos que a Diferença atravessa a própria subjetividade. 

O sujeito, em sua origem, ergue-se a partir desse deslocamento, da subjetividade que não é centrada, mas que é tecida pelo Outro. Lévinas se depara aqui com a experiência difícil de falar daquilo que não tem memória, mas que deixa vestígios de "silêncio". Com o passado não me comunico, então por que buscar falar dele? Por que falar desse tempo que não necessitou de comunicação, de ditos? Por que o passado nos incomoda se dele não temos lembrança? Porque o incômodo não vem da consciência, desde já tardia, mas do corpo – estranheidade que habita o corpo, morada do Outro, corporeidade que é hospitaleira, por isso maternal. 

A subjetividade é corporal, possui uma pele tocada, ferida pelo Outro. Seu tempo é imemorial, tempo da pele estremecida pelo gemido que vem de suas entranhas, e que, ao mesmo tempo, não é seu – esse é o incômodo. No fundo do silêncio há apenas o gemido! Assim, o silêncio existe porque é entrecruzado com o grito daquele que exige um acolhimento – grito da vida, grito que ecoa nas paredes do corpo, percorre nossas veias, nos faz nascer.

O tempo da paternidade nos reenvia ao futuro (filho), mas a maternidade é expressão do passado, "memória" da pele tocada pelo Outro. Assim, o (não) princípio é múltiplo, não apresenta um sujeito nuclear feito pela coincidência consigo mesmo, mas uma subjetividade alterizada, em que o eu (moi) não se identifica mais com o se (avec soi). A maternidade se faz, desse modo, abuso de linguagem, como metáfora da ausência; carrega o sentido do humano (não se reduzindo unicamente ao privilégio das mulheres em serem mães, ou a uma Grande Mãe universal, origem de tudo), múltiplo em seu início. 

O corpo maternal é aquele que é estranho a ele mesmo, acolhedor do estrangeiro, sensibilidade ética – estranhamento vivido na pele de uma subjetividade que é capaz de acolher sem perguntar o nome. A Morada que acolhia o Eu (sem necessitar da presença do sexo feminino para ser acolhedora) se faz agora morada da pele que acolhe o Outro (sem se reduzir à mãe biológica).

Nesses dois momentos, percebemos o feminino descolado da mulher enquanto realidade concreta ("onde se encontrarão as mulheres reais?", indaga Catherine Chalier).42 Na obra Autrement qu'être43 Lévinas praticamente abandona o termo "feminino", que está muito presente em obras anteriores como Le temps et l'autre, De l'existence à l'existant, Totalité et infini;44 e em leituras talmúdicas como Difficile liberté, L'au-delà du verset – lectures et discurs talmudiques, Du sacré au saint – cinq nouvelles lectures talmudiques.45 

O presente texto visou a aprofundar a compreensão desse termo para mostrar que a ambigüidade do feminino nos remete à ambigüidade da própria linguagem. Por vezes, o feminino aparece como metáfora da morada, da subjetividade e, em outros momentos, como encarnado na figura da mulher. Observou-se que todos os sentidos assumidos pelo feminino, seu modo de "ser", estão, de alguma maneira, presentes também na mulher. 

Pelo fato de o feminino estar arraigado ao universo ontológico, Lévinas irá mais adiante abandoná-lo (Autrement qu'être, obra de 1974), fazendo de seu texto um esforço para sair desse universo. Mas de maneira análoga, e não podemos deixar aqui de destacar, a maternidade, nessa obra, se não surge como feminina, parece trazer toda a carga desse feminino. Isso nos conduz a compreender que, nesse momento, o feminino está além do contraponto com o masculino, trazendo à tona, na subjetividade, a própria multiplicidade. Ou seja, uma subjetividade que não nasce como diferença de sexos (pois a subjetividade, embora tenha um corpo, não é erótica), mas como diferença em si mesma. 

Falar então do feminino não é falar apenas das mulheres, assim como o masculino não se relaciona necessariamente aos homens, mas é falar de um tempo em que o humano é feito de feminino e masculino. E é isso que o próprio Lévinas nos diz quando comenta que

    Talvez, por outra parte, todas as alusões às diferenças ontológicas entre masculino e feminino parecerão menos arcaicas se, no lugar de dividir a humanidade em duas espécies (ou em dois gêneros), elas queiram significar que a participação no masculino e no feminino fosse própria de todo ser humano.46

O feminino, a partir de sua equivocidade, faz surgir uma multiplicidade no próprio sujeito. O encontro com o feminino provoca um desfalecimento do eu heróico e viril que busca incessantemente se impor diante do mundo e dos outros, para desse modo se manter o mesmo. Através de sua delicadeza, doçura, o feminino fratura o universo hostil e frio do Mesmo. O feminino, através do vestígio do corpo, se faz subjetividade maternal – corpo que encarna o sentido da ética. Mas o feminino também penetra a palavra fazendo da escrita acolhimento, lugar de passagem a todo errante, sem nome, sem lugar, estrangeiro. O texto é feminino por permitir que o Outro fale, expressão que deixa seus rastros em um texto que está sempre aberto. 

  ABSTRACT-The present text intends to cover three important works by the philosopher Emmanuel Lévinas – De l'existence à l'existant, Le temps et l'autre, Totalité et infinit – in order to understand how the concept of feminine appear in his reflections and what meanings it assumes before the subject (understood by Lévinas as the masculine), the subjectivity and before the thought on ethics, considered by the philosopher as the first philosophy.
Fonte:
  Revista Estudos Feministas
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Centro Universitário Feevale, Novo Hamburgo, RS
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